Folha de S. Paulo


Os cães de guarda do regime passaram a discordar entre si

Frederic J. Brown - 30.jan.2009/AFP
Esqueletos de cavalo em cova com outros 105 animais e mais 48 carroças pertencente a chefe militar da dinastia Zhou, encontrada na província de Shanxi, China
Esqueletos de cavalo em cova com outros 105 animais e mais 48 carroças pertencente a chefe militar da dinastia Zhou, encontrada na província de Shanxi, China

No final do século 10º a.C., depois de uma série de maquinações, associações e traições que lhe permitiram infiltrar-se na corte, conquistar a confiança do último rei da dinastia Shang e por fim derrubá-lo, Wenwang alçou-se ao trono, instaurando a dinastia Zhou.

Durante a primeira fase de seu governo, o novo monarca achou que, para legitimar seus atos perante os súditos, bastava conspurcar as realizações dos Shang. Baralhava as boas e as más ações do antecessor com o único objetivo de assegurar seus interesses e os daqueles que o apoiaram e aos quais prestava contas.

No esforço de se dissociar do antigo rei, Wenwang contou não apenas com figuras-chave do poder, velhas harpias de oportunismo desabrido, mas também com a propaganda de uma brigada de simpatizantes espalhados pelo reino e dispostos a um combate inabalável para desautorizar e calar toda forma de oposição.

Era uma brigada formada por homens muitas vezes de constituição débil e faculdades limitadas, todos eles atendendo pela mesma alcunha, como se constituíssem um único indivíduo, um corpo onipresente em harmonia orgânica e consensual com a desfaçatez do novo regime. Onde quer que se manifestasse o menor vestígio de resistência à farsa que o rei encarnava, lá estava um desses agentes, pronto para golpear o fiapo que restava de bom senso.

Nessa primeira fase, diziam todos mais ou menos a mesma coisa (atribuíam todo o mal à herança do regime deposto). Num segundo momento, entretanto, conforme as circunstâncias e as consequências da tomada de poder por Wenwang se tornaram incontestáveis e o novo regime se revelou uma caricatura do que servira de pretexto para depor o anterior, a unidade de espírito da milícia retórica começou a ruir, dando sinais de contradição interna e desbaratamento.

Teria sido um golpe curto e fatal se as principais armas dessa brigada não fossem o sofisma e a má-fé. Milhares de cães de guarda do regime, que antes ladravam em uníssono à menor suspeita de dissenso, passaram a discordar entre si. Alguns preferiram o silêncio. Os mais ruidosos chegaram a se engalfinhar em praça pública.

A prática de dois pesos e duas medidas exaurira o reino. Em pouco tempo, a ideia de verdade e de justiça converteu-se numa piada de mau gosto, levada a sério apenas por incautos, para o riso de iniciados. Mas se isso já não era útil ao governo de Wenwang, que mal se sustentava na farsa que o constituíra, tampouco servia aos que a conceberam como estratégia contra a inteligência. A popularidade do rei deposto voltou a crescer exponencialmente. Era preciso conceber uma nova unidade que aglutinasse em torno do regime o corpo esquizofrênico em que a hipocrisia havia transformado o reino. Mas como abandonar a hipocrisia se o regime zelava justamente por interesses que estavam em aberta contradição com os dos súditos que o rei dizia representar?

Enquanto os associados de Wenwang, eles próprios confusos com a desfaçatez ambiente, desfalcados da inteligência e do bom senso que destroçaram por oportunismo e contando com a exaustão generalizada, quebravam a cabeça à procura de uma saída que lhes permitisse manter seus interesses e privilégios mesmo depois da queda do rei, um daqueles empedernidos brigadistas de primeira hora batia à porta do palácio com a boa intenção de sugerir ao monarca que renunciasse pelo amor de Deus.

Como na obra de um escritor genial que, muitos séculos depois, às vésperas do fascismo, além de se interessar por insetos rastejantes também discorreria sobre imperadores chineses, em contexto ligeiramente diverso do nosso conto, o mensageiro teve de vencer uma série de obstáculos no interior do palácio antes de chegar aos aposentos reais.

Conforme avançava pelo labirinto, agradecia a Deus a cada dificuldade ultrapassada e suas preces ecoavam por corredores, pátios e salões. Quando afinal chegou ao centro do poder, deparou estarrecido com o trono vazio. Ao contrário do que esperava, foi recebido com muito riso e aplauso, aclamado como um arauto dos céus pelos associados do rei. Era, enfim, o portador da solução natural e divina para os problemas da corte.

A contar daquele dia, a dinastia Zhou, uma das mais duradouras, sinistras e violentas de todos os tempos, passou a invocar o Mandato do Céu para legitimar seus desmandos e governantes sucessivos. Deus era a força por trás do arbítrio. Se um rei caísse ou não caísse, a despeito de suas mentiras e hipocrisias, era porque Deus assim o desejava. E todo mundo botava a maior fé.


Endereço da página: