Folha de S. Paulo


A pintura política, narrativa e alegórica de Kerry James Marshall

Kerry James Marshall/Bruce White
"Portrait of Nat Turner with the Head of his Master" (2011), de Kerry James Marshall

Termina no próximo domingo (29) a extraordinária retrospectiva de Kerry James Marshall no Met Breuer, em Nova York. Marshall é um pintor fora de série. Nascido em Birmingham, no Alabama, em 1955, cresceu em meio ao movimento pelos direitos civis. Em 1965, assistiu aos confrontos de Watts, em Los Angeles, para onde sua família tinha se mudado dois anos antes. Hoje vive em Chicago.

Sua pintura é política, narrativa e alegórica, revisitando a tradição da arte ocidental com uma mistura de experiência pessoal, social e histórica, pontuada por referências da cultura popular afro-americana e do folclore da diáspora africana.

Não há um único personagem branco na retrospectiva, à exceção da cabeça de um senhor de escravos decapitado em 1831 pelo escravo rebelado Nat Turner e, em outro quadro, uma representação por anamorfose da cabeça da Bela Adormecida, na versão de Walt Disney, flutuando em primeiro plano, à maneira do crânio de "Os Embaixadores" (1533), de Hans Holbein.

Na contramão de boa parte da arte contemporânea, a pintura de Marshall nada tem a ver com o exercício inócuo e retórico que nos últimos anos passamos a justificar como arte política. Em entrevista recente ao "New York Times", o artista deixou claro seu partido da reflexão (contra as ideias feitas e as palavras de ordem): "Você quer que as pessoas, em vez de confiar no que você diz, olhem para o quadro e cheguem às próprias conclusões. Se é preciso alguma inteligência para fazer arte, também é preciso inteligência para avaliá-la".

Marshall é um artista anacrônico no sentido mais transgressor da palavra. Como se não bastasse ser um pintor convicto, preza o domínio da técnica e a maestria da forma como condições de possibilidade para as ideias, os projetos e as representações. "Sempre me interessei pelas questões formais, desde as pinturas medievais até De Kooning e Warhol", disse à revista "Bomb", em 1998. Uma das salas da exposição foi reservada a sua seleção pessoal do acervo do Metropolitan. Entre as obras, figuram pinturas de Ingres, Bonnard, Balthus, Matisse, Seurat e Gerhard Richter, expostas em torno de um objeto mágico e sacrificial dos povos Bamana, do Mali, numa caixa de vidro no centro da sala.

Para pintar o retrato sinistro de Julian Carlton, o criado que em 1914 ateou fogo à residência de verão de Frank Lloyd Wright, matando a amante do arquiteto e seus filhos a machadadas, Marshall recorreu à mediação de um ator para interpretar o personagem. É o retrato de uma representação.

Para pintar a cena que precede o assassinato de Fred Hampton, líder dos Panteras Negras, em 1969, durante uma batida policial em Chicago, Marshall lançou mão de uma tela toda negra, onde mal se distinguem as figuras. Nada é simples ou imediato. A potência vem da pintura, e não de ideias que a pintura ilustra ou que pudessem ser expressas por outros meios. "Essas pinturas estão carregadas de contradições. É o que torna o trabalho excitante", disse à "Bomb".

Uma grande tela vermelha domina uma das salas. À primeira vista, parece uma pintura abstrata, mas logo se percebe o fragmento de uma frase escrita em letras garrafais, que vai se incorporando ao fundo e desaparecendo, conforme avança para a direita: "Se eles vierem de manhã...". É uma referência à carta aberta que James Baldwin escreveu para Angela Davis na prisão, em 1970:

"Sabemos que a democracia não significa a coação de todos a uma mediocridade mortal –e perversa–, mas a liberdade de todos para almejar o melhor (...). Sabemos que nós, negros, e não apenas nós, negros, fomos e continuamos sendo vítimas de um sistema cujo único combustível é a ganância, cujo único deus é o lucro. Sabemos que os frutos desse sistema são a ignorância, o desespero e a morte, e sabemos que esse sistema está condenado, porque é insustentável [...].

"Alguns de nós, brancos e negros, sabemos o preço pago para tornar possível uma nova consciência, um novo povo, uma nação sem precedentes. E se sabemos e não fazemos nada, somos piores do que os assassinos contratados em nosso nome. [...] Se sabemos, devemos lutar pela tua vida como se fosse a nossa vida –porque é o que ela de fato é– e impedir com nossos corpos o acesso à câmara de gás. Porque se eles te levarem de manhã, virão nos buscar à noite."

Visitei a exposição de Marshall na mesma semana em que 56 presos foram assassinados (e a metade deles decapitada) num presídio de Manaus. James Baldwin escreveu a carta aberta a Angela Davis em 1970. Poderia ter escrito hoje, nos EUA de Trump. Ou no Brasil.


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