Folha de S. Paulo


Vamos falar sobre grandes fortunas?

Ainda será motivo de minha derrocada esse maldito ca­coete que faz de mim um eterno pau-mandado: a mais com­pleta ausência de vida interior.

E eu pergunto a você, leitor que priva de minha intimidade: por que ainda atendo aos telefonemas dela? Outro dia, minha tresloucada amiga Bucicleide ligou para fazer um comunicado importante. Ain­da bem que tive o cuidado de gravar a conversa para transcrever aqui: "Buci falando, tudo? Tudo. Anotaí o nome de um autor que você precisa porque precisa ler para explicar aos seus três leitores: Thomas Piketty. Então, encontrei o Paul e ele... Hein? Como assim, 'Que Paul?', o Krugman, ora, quem você pensou que fosse? O McCartney? Kkkkkk... Concentra: o Paul me disse que o livro é um 'must', anotaí, anotaí: 'O Capital no Século 21'".

É triste, eu sei, constatar que ain­da exista quem use palavras como "must" e dê risada em "kkkks" este­ja ela ou não se expressando de for­ma onomatopaica. Mais penoso ainda é saber que esta anta de Ray-Ban que vos fala já tinha comprado o livro na Amazon.com antes mes­mo de a Buci, digo, Cleide desligar.

Não é que o livro do homem está à altura de meu exigente leitor?

Tudo muito simples. A fim de en­tender porque a desigualdade de renda nos EUA (ou seja, breve num cinema perto de você) está aumen­tando, a despeito da inegável pros­peridade (IDH), evolução tecnoló­gica, disseminação de informação, etc., que o capitalismo proporcio­nou ao planeta, Piketty resolveu es­tudar apenas alguns dados estatís­ticos, relevando análises teóricas. Ele se ateve, mais especificamente, ao WTID (World Top Incomes Data­base), banco de dados com infor­mações sobre os impostos pagos pelos mais ricos.

Nem Keynes nem Marx dispuseram de dados tão isentos. Os ricos estão ca­da vez mais ricos, os EUA nunca fo­ram tão prósperos, mas a desigual­dade só faz aumentar.

A parcela dos 1% mais ricos, CEOs, astros do esporte e cinema e gênios da tecnologia sempre foi negligen­ciada pelos economistas. Ocorre que agora eles chegam a deter 20% da riqueza dos EUA.

Opa! Então vamos tratar de anali­sar as diferenças entre ganhos de capital e salários. Epa, opa!

Não é à toa que há entre os conser­vadores norte-americanos quem considere o milionário Warren Buffet um esquerdista temerário. Ele está longe disso, claro, mas foi um dos primeiros a alertar que sua secretária pagava mais imposto de renda do que ele, megainvestidor.

Os EUA, notoriamente, despre­zam ver ricos pagando muito im­posto por considerar que, lá no fim da cadeia, quem acabará sendo pe­nalizado serão produção e empre­go.

Em última instância, faz mesmo sentido não onerar ganhos com ações, uma vez que a existência de um mercado de capitais serve para financiar a indústria.

A saída, propõe Piketty, é eliminar a figura do herdeiro, instaurando pesados impostos para heranças a pessoas físicas. Bill Gates já resolveu esse dilema para seus filhos, doando sua fortuna em vida. Buffet idem.

Por aqui, o tema do imposto sobre grandes fortunas entra e sai de pau­ta na base mais de chantagem do que qualquer outra coisa. Nem por isso nós deixamos de ter ilustres e bem-sucedidos distribuidores de renda. Como esquecer Zélia Car­doso de Mello e Dilson Funaro que deixaram todos na merda?

Brincadeiras à parte, quem sabe o livro não traga o assunto para a elei­ção? Não seria uma discussão bem-vinda? Especialmente em vista do fato de que são 15 famílias (menos?) -que não se distinguem exatamente pela dedicação ao ser­viço público- as que detêm poder, renda, beleza, dentes, vitaminas e privilégio no país?


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