Folha de S. Paulo


A capacidade criativa de Machado de Assis, e a de Silviano Santiago

Simone Marinho - 16.jun.2014/Agência "O Globo"
O escritor Silviano Santiago
O escritor Silviano Santiago

Quanto já se escreveu sobre nosso maior escritor? Quilômetros de prateleiras. Machado de Assis merece o esforço. Sua obra tem profusão de ângulos, camadas, sentidos. É clássico na acepção de Ítalo Calvino: não acabou de dizer o que tinha a dizer.

Também é clássico porque não acabou o que se tinha a dizer a seu respeito. Difícil achar ponto novo, depois de esquadrinhado seu universalismo e seu brasileirismo, estilo, enredos, personagens.

Ingrato competir com a tese de Roberto Schwarz, para quem Machado teria entranhado na forma literária as contradições da sociedade escravista brasileira: seu narrador volúvel seria uma transfiguração da conduta da classe dominante em regra de composição narrativa. Mas Silviano Santiago achou veio novo e profícuo em seu "Machado: Romance" [Companhia das Letras, R$ 69,90 (424 págs.)]. Enquanto Schwarz, ao migrar o olho do conteúdo para a forma, trouxe luz nova à obra, Santiago, ao recuperar a conexão entre obra e vida, tirou o escritor da coxia.

Falar da pessoa de Machado ficou complicado desde que Sílvio Romero o fez com sua habitual falta de fineza. Em 1897, resumiu seu juízo numa enumeração: "gago, mulato e epilético". A fortuna crítica posterior rechaçou o anátema e com ele o corpo do autor. Machado virou figura diáfana. "Um grego", sublinhou Joaquim Nabuco, repreendendo José Veríssimo, que ousara se referir ao mestre como mulato. Em tempos de ação afirmativa, a cor de Machado voltou, mas a doença ficou no ponto em que Romero a deixara. Santiago tomou esse ponto de vista proscrito.

Farta pesquisa de fontes –notas de Machado sobre suas convulsões, relatos de contemporâneos, relatórios médicos, teorias oitocentistas sobre o mal, o paralelo com Flaubert, também epilético– ampara o tratamento do homem.

A enfermidade dá ainda chave para reler a obra. O estilo machadiano seria "convulso", desconhecendo a linha reta. O célebre delírio que abre "Memórias Póstumas de Brás Cubas", quando o personagem cavalga um hipopótamo, ganha novo significado, remetido às "ausências" nas crises.

A estratégia narrativa consiste em eleger um par principal para Machado ao tratar de questões ou contextos específicos. Longe de manjados, os personagens eleitos são obscuros ou inusitados, mas potentes para iluminar o protagonista. Assim é o monarquista católico Carlos de Laet, testemunha de um ataque epilético, e o médico Miguel Couto, que introduz o universo técnico da moléstia e o cotidiano depressivo do Machado viúvo.

Já Flaubert abre espaço para a relação entre epilepsia e estilo e para o jogo de semelhanças e diferenças com escritores contemporâneos a ele. A enfermidade é ainda meio de acessar referências mitológicas e bíblicas que bordam a obra, caso do exame do apreço machadiano pela "Transfiguração" de Rafael.

O par fulcral no livro é Mário de Alencar. O filho de José de Alencar dá o mote para traçar heranças e quebras de Machado com respeito ao nome maior do romantismo brasileiro. Grande amigo de fim de vida, esse M. A. comunga com o outro a epilepsia. O sofrimento partilhado descortina um Machado frágil e generoso, impotente ante a doença. Jamais, contudo, dobrado por ela. Entre crises, segue funcionário público responsável, diligente presidente da Academia Brasileira de Letras, autor prodigioso e prestimoso pai do filho postiço.

Uma Primeira República ignorada se descortina no livro. O narrador vagueia por ruas e casas cariocas, pela modernização excludente e seus conflitos, por gostos da elite e dissabores dos humildes. Tudo sem clichês e com apuro estilístico.

Na narrativa empática, autor e objeto se emparelham pela experiência da velhice. Nos anos 1970, Jean-Michel Massa escreveu "A Juventude de Machado de Assis". Santiago poderia adotar título análogo, trocada a fase da vida. Ressalta o que se reserva aos longevos: perdas, males, solidão. Mas passa longe de narração melancólica sobre autor defunto. O humor de Machado salpica a trama.

O narrador que interpela o leitor e o tema do acaso –predileções machadianas– constroem ponte entre biografia e autobiografia: Santiago nasceu no dia da morte de Machado (e seu sobrenome repete o de dom Casmurro). O jogo de espelhos resvalaria em solipsismo se viesse sozinho, mas se adensa pela combinação de gêneros –história cultural, crítica literária, ensaio, romance– com uma maestria que só a maturidade faculta. É obra de acumulação, de vida inteira.

Narra o drama da velhice sem comiseração, mas mostra como o escorrer do tempo apurou a capacidade criativa de Machado. O mesmo vale para Santiago.


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