Folha de S. Paulo


As gralhas

É preciso ter cuidado com o uso dos pronomes. Já sabiam Monteiro Lobato e seu personagem Aldrovando Cantagalo. Este, no conto "O Colocador de Pronomes", demonstra um preciosismo linguístico que o faz (ou fá-lo?) um primo-irmão de Michel Temer.

Aldrovando se dedicou a, nas palavras de Lobato, "contrabater o monstro da corrupção". Da corrupção pronominal, bem entendido. Estudou os clássicos da língua e quando se sentiu capacitado escreveu um catatau de 500 páginas, propondo um "método automático de bem colocar os pronomes". Quando o livro saiu, a página da dedicatória trazia um "que sabe-me", em vez de "que me sabe". O autor ficou tão desesperado que morreu na hora.

Quanto tempo faz que Temer não comete uma mesóclise? A primeira surgiu no discurso de posse, um "sê-lo-ia" que chocou pela novidade do antigo. Depois veio o dia em que ele bateu na mesa e soltou um "consertá-lo-ei". Nas duas vezes, o uso do pronome interposto ao verbo quis funcionar como uma espécie de marca –que se desejava definitiva– para um governo provisório. "À falta de uma melhor, instaure-se a República das Mesóclises!", parecia dizer o interino.

O problema é que, como no livro de Aldrovando, logo surgiram as gralhas, erros que se escondem e só aparecem quando a edição está pronta. O volume que Temer quer nos fazer comprar está cheio delas: a turma de ministros investigados pela Lava Jato é a mais visível. Como também a inabilidade de alguns "notórios" do primeiro escalão. Mas a política do "não fale em crise, me apoie e pegue uma boquinha", como se viu no pacote que criou 14 mil cargos e aumentou o salário do funcionalismo, é um empastelamento e tanto.

O projeto de salvação nacional corre o risco de ter o mesmo fim dos inéditos de Aldrovando, vendidos a três tostões o quilo.


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