Folha de S. Paulo


Cimentocracia

RIO DE JANEIRO – Leleco e Silene passaram por ali a caminho do Bar do Pepino, onde teriam sua tarde de amor inaugural. Como também, a bordo do seu calhambeque, o jornalista José Ramos Tinhorão "" a quem Nelson Rodrigues deu um jeito de meter na história do folhetim "Asfalto Selvagem".

Passou por ali, depois de deixar o Hotel Leblon, a normalista Claudia Bill, personagem de outra obra de ficção, o romance "A Mulher Carioca aos 22 anos", de João de Minas. E é de espantar que o cenário não tenha merecido mais livros, quem sabe uma trama policial bem rocambolesca, envolvendo adultérios, subornos, contrabandos e o corpo de uma bela mulher que despenca no costão e é engolido pelo mar.

Por ali subiram Alicia (Ingrid Bergman) e Devlin (Cary Grant) em direção à casa de Sebastian (Claude Rains), o espião nazista do filme "Interlúdio", de Alfred Hitchcock. Ali virou uma tela de Anita Malfatti. E o fundo da capa do inacreditável disco "Som, Sangue e Raça", de Dom Salvador e Abolição.

Por ali pilotaram o italiano Carlo Pintacuda, o austríaco Hans von Stuck, a francesa Hellé Nice e o brasileiro Irineu Correa, que morreu em uma das primeiras corridas de automóveis realizadas no Brasil, nos anos 1930, conhecidas como Trampolim do Diabo. Ali morreu, debatendo-se contra as pedras depois de escorregar, o zagueiro do Fluminense Ari Ercílio, que formou no time de Artime e Gérson no início da década de 1970. Só os mais experientes pescadores da Rocinha e do Vidigal se atrevem na Gruta da Imprensa, e, mesmo assim, jamais em dias de ressaca.

A paisagem está outra vez de luto. Entre as intervenções pelas quais o Rio passa, a ciclovia Tim Maia era um dos projetos mais simpáticos e integrados à natureza. Foi derrubado pela "cimentocracia", o poder absoluto e corrupto do concreto a que o país parece entregue.


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