Folha de S. Paulo


Por que as mulheres devem dividir a conta do motel

Fanzia vinha de uma família pobre. Sempre gostou de cantar e dançar. Adotou o nome artístico de Qandeel Baloch, virou modelo famosa e acabou transformando-se na primeira webcelebridade feminina no Paquistão.

Nas mídias sociais, desafiava o machismo de seu país: falava de temas polêmicos e postava selfies consideradas sensuais. Na semana passada, foi estrangulada por seu irmão enquanto dormia. Tinha 26 anos. A razão do assassinato? Fanzia havia desonrado a família com seu comportamento independente. Merecia morrer.

AFP
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Saba apaixonou-se e casou-se contra a vontade de seus pais. Para que a honra familiar fosse restaurada, deveria morrer. Levou um tiro na cabeça, desferido pelo próprio pai, com a ajuda de um tio. Dada como morta, foi jogada em um rio, dentro de uma sacola, para desaparecer. Milagrosamente, sobreviveu. (Um dos documentários vencedores do Oscar deste ano —"Uma menina no rio: o preço do perdão", de Sharmeen Obaid-Chinoy–conta a história de Saba.)

A cada 90 minutos, um assassinato por honra acontece no mundo. Em geral, em países muçulmanos. No Paquistão, por exemplo, são mais de 1.000 por ano. A impunidade é a regra, porque, ali, existem leis que permitem que a família da vítima perdoe o assassino. Como vítima e assassino são da mesma famíla, tudo se resolve em casa, e ninguém vai para a cadeia. É como se o assassino fizesse o trabalho sujo, retirasse o lixo da família, que lhe fica grata por isso.

O colunista Nicholas Kristof, do "New York Times", considera que, se o desafio moral da humanidade no século 19 foi o fim da escravidão e o do século 20, a luta contra o totalitarismo, no século 21, o grande desafio moral a ser enfrentado é o combate ao abuso e à opressão individuais, que ameaçam a vida cotidiana de tantas meninas e mulheres ao redor do mundo, inclusive no Brasil.

Penso na minha colega de escola Patrícia, que tinha de obedecer a seu irmão mais novo, simplesmente porque ele era o homem da casa, e ela não.

Esse mesmo irmão nunca deixaria uma mulher pagar ou dividir uma conta com ele. Podia parecer galanteio, mas era só uma forma de controle. Afinal, quem paga manda.

Conheço várias mulheres que se dizem feministas, mas fazem questão de que os homens paguem suas contas em restaurantes e motéis. Chamam isso de "cavalheirismo".

Ó incoerência! Proclamam sua independência aos quatro ventos, mas se esquecem de que a independência financeira é condição necessária para a igualdade.

Mulheres mais novas já se deram conta desse fato. No entanto, na minha geração, vejo muitas mulheres acharem normais e desejarem essas benesses financeiras do sistema machista.

Só pode se tratar de um fetiche autodestrutivo.

É como nos financiamentos de campanhas políticas por empresas privadas: quem recebe fica rendido. Ninguém dá dinheiro de graça. Sempre há interesses ulteriores. Não existe almoço grátis. Não se pode ter o melhor do feminismo e do machismo em um mesmo pacote.

Exigir que um homem pague a conta —ou recusar que uma mulher pague a conta— é também aceitar que mulheres tenham salários mais baixos e que precisem de ajuda econômica masculina para sobreviver. É corroborar uma cultura inaceitável de controle machista, em que as mulheres, pobrezinhas, precisam de um cara que lhes financie e que lhes proteja, porque, afinal, ele é o homem.

Você, como diria Caetano Veloso, é "apenas uma mulher".


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