Folha de S. Paulo


A Hungria não é um país pequeno

Enquanto escrevo esta coluna, ouço uma gravação das "Danças Húngaras", de Johannes Brahms, que comprei quando estava em Budapeste substituindo, por três meses, um colega da embaixada. Quando me designaram, eu nunca havia estado na Hungria. Passei lá todo o inverno. Tenho boas memórias. Quero voltar um dia.

Em Budapeste, duas coisas prosaicas me chamaram a atenção: a maneira como os húngaros, ao final das inúmeras apresentações musicais a que assistem, aplaudiam os artistas de forma ritmada, em uníssono, e o fato de que todos pareciam conhecer –e lamentar– a assinatura de um tal de Tratado de Trianon.

Quanto à maneira peculiar de aplaudir, trata-se do chamado "aplauso de ferro" ("vastaps", em húngaro), cuja origem não consegui identificar. Mas o ato impressiona: imagine um teatro inteiro batendo palmas com força, ao mesmo tempo, sincopadamente.

Já o tal do Tratado de Trianon foi assinado em Versalhes, em 1920, depois da Primeira Guerra, pelo então derrotado Reino da Hungria e pelos aliados vencedores. O acordo estabeleceu o status da Hungria como país independente e redefiniu as fronteiras húngaras nos limites que até hoje permanecem.

O tratado esquartejou a Hungria: em relação a antes da guerra, o país perdeu 72% do seu território e 64% de sua população. Hoje, entre os países europeus, ocupa o 18º lugar em termos territoriais e o 17º em termos populacionais.

É compreensível que Trianon tenha representado um trauma coletivo e deixado uma marca profunda na identidade nacional húngara. Posteriormente, as invasões nazista e soviética contribuíram para reforçar a autoimagem de país humilhado e diminuído.

O trauma de Trianon existe, mas não se justifica. Um país que deu ao mundo músicos como Franz Lizst, Béla Bártok e treze Prêmios Nobel não pode jamais se sentir pequeno.

No entanto, essa grandiosidade do povo húngaro, que inspirou Johannes Brahms, desaparece diante da pequenez de seu governo, que ergueu cercas para evitar a passagem do fluxo de refugiados que querem chegar à Europa Ocidental.

Grande parte da população húngara também sofreu a destruição da guerra e da opressão. Hoje, é difícil imaginar que cidadãos húngaros tenham estado na mesma situação em que se encontram os refugiados que se amontoam na estação de Keleti, em Budapeste –mas estiveram.

A imagem da criança síria afogada na praia turca poderia ter sido feita na fronteira fechada da Hungria. Imre Kertész, um dos húngaros que ganharam o Nobel, conta de forma muito vívida como foi preso em Budapeste em uma linha de ônibus que passava em frente à embaixada e que eu diversas vezes tomei.

Aos olhos do mundo, a cerca cortante, a brutalidade sádica e o discurso de ódio diminuem a Hungria muito mais que o Tratado de Trianon.

(O primeiro-ministro da Hungria justificou suas ações com base na preservação de valores cristãos. Sugiro que ele faça um intensivo com o papa Francisco, que entende do tema e que, em lugar de criar problemas para gente em situação de dificuldade, ajuda a resolver.)

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