Folha de S. Paulo


Não economizem o Itamaraty

Quando eu era criança, ninguém nunca me falou que vivíamos numa ditadura. Eu achava que todo presidente era general e todo programa de televisão tinha um certificado da censura.

Com cinco anos, o que eu mais queria na vida era a figurinha tripla do presidente Médici que completaria o meu álbum "Brasil, Pátria Amada".

Cresci na ignorância. Do quarto onde brincava com figurinhas não se ouvia nada. Os ruídos inconvenientes da realidade política não chegavam a mim. Mas eles existiam. Os gritos de tortura eram reais.

A ditadura permeava tudo, infiltrava-se em todas as instituições, mas pouca coisa se via. Por isso a importância da Comissão Nacional da Verdade –para desvelar o que nos era ocultado.

No caso do Itamaraty, houve envolvimento de diplomatas em ações do regime militar. Funcionários em desacordo com o governo –além dos "pederastas, bêbados e vagabundos"– foram perseguidos e expurgados.

No entanto, como instituição, a reação do Itamaraty em muito supera a covardia histórica de alguns de seus integrantes. Em primeiro lugar, houve diplomatas lutando por justiça –daí os perseguidos.

Durante os trabalhos da CNV, o Itamaraty abriu seus arquivos e colaborou exemplarmente.

Na busca da verdade institucional, os alunos do Instituto Rio Branco recentemente publicaram na revista "Juca" (www.institutoriobranco.mre.gov.br) excelentes análises sobre o Itamaraty e o regime militar.

Até artisticamente, integrantes do Itamaraty exploraram o tema, como Edgard Telles Ribeiro, que, em seu necessário romance "O Punho e a Renda" (Record, 2010), narra a trajetória de um diplomata cooptado pela ditadura.

Que outras instituições fizeram algo semelhante?

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Não consigo entender a lógica dos repetidos cortes no Orçamento do Itamaraty. A imagem que me vem à mente é a do hospital que tem um aparelho de ressonância magnética avançado apodrecendo no porão, enquanto pacientes morrem por falta de atendimento.

O Itamaraty custa pouco perto dos benefícios que traz ao Brasil. Só para dar um exemplo concreto, não faz muito tempo, a embaixada em Tóquio negociou a abertura do mercado japonês de carne suína (o maior do mundo) para produtores catarinenses. Isso é coisa de centenas de milhões de dólares.

O Estado brasileiro conta com uma valiosa capacidade instalada para a execução de sua política externa. São 227 repartições em 150 países e 1.590 diplomatas, dos quais 500 entraram nos últimos anos, com a expansão de quadros e da rede diplomática promovida pelo governo Lula.

Essa estrutura custa pouco. Em 2003, o Itamaraty consumia 0,5% dos gastos do Executivo. No ano passado, com os cortes, caiu para 0,28%. O que já era pouco ficou menor. Ou seja: para economizar 0,22% do Orçamento, prejudicou-se a ação externa do Brasil em 150 países do globo.

É muito pouco dinheiro para compensar o prejuízo de tirar o Brasil do mapa. É como aquela história do hospital... no mínimo, é antieconômico.


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