Folha de S. Paulo


Novo livro reconta trajetória genial de Leonardo da Vinci

"Descreva a língua do pica-pau", escreveu certa vez Leonardo da Vinci (1452-1519) em uma das misteriosas listas de coisas a fazer que enchem páginas e mais páginas dos seus cadernos que chegaram até nós.

Não se trata de uma observação aleatória, defende o historiador e jornalista americano Walter Isaacson, 65, cuja biografia de Leonardo acaba de chegar às livrarias.

Essa curiosidade aparentemente descabida a respeito da língua da ave –a qual, aliás, é rápida, musculosa e pontuda, lembrando um cinzel– ajudaria a encapsular os motivos que transformaram Leonardo no representante por excelência da genialidade da Renascença.

Para Isaacson, que também escreveu elogiados relatos sobre a vida de outras figuras consideradas geniais (Einstein, Benjamin Franklin e Steve Jobs, por exemplo), foi justamente o olhar obsessivamente curioso sobre o mundo (em todas as suas facetas, inclusive as que parecem irrelevantes para homens menores que ele) o responsável por elevar o artista a um patamar único, que mesmo outros mestres de seu tempo não alcançaram.

Suas capacidades singulares de observação, que parecem quase sobre-humanas para sujeitos com menos paciência e talento, permitiram que Leonardo retratasse detalhes da anatomia humana com precisão inigualável, dos cachos dourados de seus modelos à qualidade translúcida dos olhos.

Tais feitos de recriação anatômica só foram possíveis graças à cuidadosa dissecação de cadáveres –humanos e de outros animais– praticada pelo polímata.

Apaixonado pelo comportamento da água e pelo voo das aves, projetou máquinas voadoras, sistemas de drenagem, trajes de mergulho (e um paraquedas que funcionou direitinho num teste realizado neste século).

O olhar aguçado sobre a natureza italiana o levou a retratar com precisão as diferentes rochas e camadas geológicas numa cena em que a Virgem Maria, o menino Jesus e o pequeno João Batista interagem perto de uma gruta, ou as espécies de plantas que de fato poderiam crescer num local sombreado como aquele.

E o registro de como a luz ricocheteia em objetos de diferentes cores, atravessa o ar cheio de poeira em suspensão ou muda sua influência ao longo do dia fizeram de Leonardo o grande mestre do "chiaroscuro" (a combinação artística do claro e do escuro para sugerir tridimensionalidade) e do "sfumato" (a arte de evitar separações bruscas entre tons, capaz de produzir tremenda sutileza e realismo nas imagens).

Na obra dele, portanto, as fronteiras entre ciência e arte –tal como na técnica do "sfumato"– ficam borradas, e é preciso acrescentar uma terceira dimensão, a da fantasia pura, segundo Isaacson.

Conviviam na cabeça do artista a obsessão por retratar os mínimos detalhes da realidade e um impulso para criar coisas impossíveis – como a maior parte das engenhocas miraculosas rascunhadas em seus cadernos, que provavelmente nunca teriam utilidade prática, apesar de abrirem uma janela para o futuro da tecnologia.

PROCRASTINADOR

Segundo Isaacson, é possível que Leonardo só tenha alcançado seu status único, em parte, por conta de sua condição de autodidata.

Filho bastardo de um tabelião, nascido na vila toscana de Vinci (daí o segundo nome do artista, que não chega a ser um sobrenome, mas está mais para uma mera "designação de origem"), ele foi alfabetizado apenas em italiano, de modo rudimentar, e virou aprendiz do artista florentino Verrocchio na adolescência.

Com isso, Leonardo passou o resto da vida tentando aprender um pouco de latim sem muito êxito, ficando, portanto, sem acesso direto às grandes obras da Antiguidade greco-romana que estavam inspirando outras cabeças renascentistas.

Por outro lado, pôde desenvolver ideias originais, menos presas à tradição e baseadas na experimentação direta sobre diversos campos. Se não dispunha de conhecimentos matemáticos sólidos para transformar seus experimentos em equações, ao menos sua abordagem "mão na massa" mostraria o caminho a seguir na futura Revolução Científica.

Para quem procura inspiração na vida e na obra do gênio, um elemento talvez ajude a deixar fãs modernos mais aliviados e mais indulgentes consigo mesmos: tal como muita gente hoje, Leonardo era um procrastinador de mão cheia.

Leonardo da Vinci
Walter Isaacson
l
Comprar

Sua incapacidade para terminar certos trabalhos (os quais, mesmo não concluídos, entraram para sua lista de obras-primas, como os esboços de "A Adoração dos Magos" e o quadro que retrata são Jerônimo no deserto) tinha um pouco de perfeccionismo e outro tanto de aparente deficit de atenção: era difícil para ele resistir à tentação de explorar todas as avenidas que se abriam diante de sua curiosidade.

LEONARDO DA VINCI
AUTOR Walter Isaacson
TRADUTOR André Czarnobai
EDITORA Intrínseca
QUANTO R$ 69,90 (640 págs.)


Endereço da página:

Links no texto: