Folha de S. Paulo


Homo sapiens se espalhou pelo mundo 200 mil anos antes do esperado

Museum Ulm
Escavação em Hohlenstein-Stadel, Alemanha, em 1937, ano em que fêmur de neandertal foi achado
Escavação em Hohlenstein-Stadel, Alemanha, em 1937, ano em que fêmur de neandertal foi achado

Usando fósseis e análises de DNA, cientistas estão começando a pintar um retrato dos primórdios da humanidade, uma história com mais reviravoltas do que você veria em um roteiro de cinema.

O consenso atual entre os especialistas é de que o Homo sapiens evoluiu pelo menos 300 mil anos atrás, na África. Muito mais tarde –70 mil anos atrás– um pequeno grupo de africanos se estabeleceu em outros continentes, dando origem às demais populações atuais do planeta.

Para Johannes Krause, diretor do Instituto Max Planck de História Humana, na Alemanha, essa lacuna na linha do tempo é peculiar.

Ancestrais

"Por que as pessoas não deixaram a África antes disso?", questionou. Afinal, o continente está conectado ao antigo Oriente Próximo. "Seria possível sair andando."

Em estudo publicado na terça (4) pela revista científica "Nature Communications", Krause e seus colegas afirmam que os africanos de fato deixaram seu continente de origem a pé –mas mais de 270 mil anos atrás.

Com base em DNA recentemente descoberto em fósseis, os pesquisadores concluíram que uma onda de Homo sapiens primitivos ou de parentes próximos de nossa espécie abriu caminho da África para a Europa. Lá, eles se miscigenaram com os neandertais.

Em seguida, os primeiros emigrantes africanos desapareceram. Mas parte de seu DNA perdurou em gerações posteriores dos neandertais.

"O que temos agora é um retrato abrangente", disse Krause. "Todas as meadas da história se unem nele."

Desde o século 19, paleontologistas vêm enfrentando dificuldades para compreender de que maneira os neandertais se relacionam a nós. Fósseis mostram que eles eram distintos anatomicamente, com testas avantajadas, corpos robustos e outros traços sutis que nos faltam.

Os ossos mais antigos de espécimes semelhantes aos neandertais foram achados na caverna espanhola Sima de los Huesos e foram datados de 430 mil anos atrás. Restos mais recentes dos neandertais, de cerca de 100 mil anos atrás, foram encontrados espalhados por toda a Europa e em uma faixa que se estende até o sul da Sibéria.

Então, 40 mil anos atrás, os neandertais desaparecem do registro fóssil.

Quando era aluno de pós-graduação, na metade dos anos 2000, Krause trabalhou junto a diversos museus para realizar sondagens em fósseis de neandertais. Em alguns deles, ele e os colegas conseguiram achar fragmentos de DNA que puderam estudar.

Os cientistas que estudam genes antigos buscam duas espécies de material genético. A vasta maioria de nossos genes fica no núcleo das células. Herdamos o DNA nuclear de nossos dois progenitores.

Mas também carregamos um pequeno volume de DNA nas usinas que geram combustível em nossas células, as mitocôndrias. O DNA mitocondrial é herdado apenas do lado materno, porque o espermatozoide do pai destrói seu DNA mitocondrial durante a fertilização.

Agora, Krause e seus colegas descobriram novas amostras de DNA neandertal que podem resolver alguns mistérios. Em 2013, um de seus orientandos de pós-doutorado, Cosimo Posth, examinou um fóssil neandertal encontrado em 1937 na caverna alemã de Hohlenstein-Stadel.

Ele conseguiu reconstruir o DNA mitocondrial do fóssil e estimou que ele tivesse 120 mil anos de idade e, mais importante, que pertencesse a um ramo com longo histórico, na árvore genealógica dos neandertais. Ele e os colegas determinaram que todos os neandertais conhecidos herdaram seu DNA mitocondrial de um ancestral que viveu 270 mil anos atrás.

Todos os dados apontam para uma sequência de acontecimentos que poderia resolver o enigma que aflige Krause há tanto tempo.

Antes, os ancestrais comuns dos neandertais e dos homens de Denisova, de uma caverna siberiana, se espalharam pela Europa e Ásia mais de meio milhão de anos atrás. Gradualmente, a população do oeste e a do leste se separaram, geneticamente.

No leste, os ancestrais se tornaram homens de Denisova. No oeste, se tornaram neandertais.

Em algum momento anterior a 270 mil anos atrás, seres humanos provenientes da África e geneticamente muito próximos a nós emigraram para a Europa e se miscigenaram com os neandertais. O DNA deles foi incorporado ao pool genético neandertal.

Posth disse que é possível que os primeiros membros de nossa espécie tenham emigrado da África do Norte para a Europa. Um sustentáculo dessa ideia é a descoberta, reportada no mês passado, de fósseis de Homo sapiens datados de 300 mil anos atrás, no Marrocos.

Mas Posth disse que era cedo demais para descartar outra possibilidade: a de que esses emigrantes pertenciam a outra espécie africana estreitamente aparentada a nós que os cientistas até agora não documentaram.

O DNA mais revelador agora pode vir das montanhas do Marrocos. Lá, cientistas talvez consigam encontrar genes de espécimes mais antigos de Homo sapiens, que poderão ser comparados aos dos neandertais.

"São coisas que eu jamais imaginaria possíveis cinco anos atrás", disse Krause.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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