Folha de S. Paulo


Restaurante de mulheres atacadas com ácido ajuda autoestima das sobreviventes

Sheroes Hangout
O Sheroes Hangout foi aberto em Agra, cidade na Índia
O Sheroes Hangout foi aberto em Agra, cidade na Índia

O café mal iluminado começava a ganhar vida na manhã de uma segunda-feira, enquanto o trânsito na rua Fatehabad engrossava.

O Sheroes Hangout (ponto de encontro de heroínas, em tradução livre) fica entre alguns "dhabas" (restaurantes) modestos, em frente a um hotel cinco estrelas. O café é um lugar conhecido em Agra, célebre por ser a cidade do Taj Mahal. A decoração é de bom gosto, e as paredes ostentam grafites coloridos.

O Sheroes figura no mapa por uma razão incomum: é comandado por mulheres que sobreviveram a ataques com ácido.

Quando o dia começa, o gerente de operações do café, Bhupendra Singh, 29, arruma os móveis, com ar irritado. Mas o ambiente do lugar muda com a chegada da alegre Rupa, 24.

É difícil acreditar que até alguns anos atrás Rupa evitava conversar com as pessoas, escondendo seu rosto atrás de uma "dupatta" (echarpe comprida). Ela se escondia para não precisar expor seu rosto, mutilado por ácido corrosivo jogado nela enquanto dormia, aos 15 anos apenas, supostamente por sua madrasta e alguns homens.

"Não me importo mais com o que as pessoas pensam. Não ligo quando ficam me olhando. Quem me atacou é quem devia esconder o rosto. Por que eu tenho que me esconder?", ela pergunta.

O Sheroes foi aberto em Agra em 2014 e hoje tem ramais em Lucknow (Estado de Uttar Pradesh) e Udaipur (Rajastão). O café nasceu da campanha para Acabar com os Ataques com Ácido, lançada em 2013.

Alok Dixit fundou a campanha e explica sua gênese. "Lançamos uma campanha on-line para reunir sobreviventes de ataques com ácido, e mais e mais sobreviventes nos procuraram. A maioria está na faixa dos 16 a 28 anos e é dependente de sua família."

Dixit explicou que o Sheroes foi aberto porque todos queriam criar um sistema de autossustento para as sobreviventes.

Diferentemente de Rupa, Rukkaiya, 30, ainda cobre o rosto quando não está em casa ou trabalhando no Sheroes Hangout. "Estou mais autoconfiante desde que entrei para o Sheroes e conheci outras sobreviventes", ela contou. "Elas são como minha família. Até os frequentadores do café nos tratam como gente normal."

Rukkaiya tinha apenas 14 anos quando parentes de sua irmã jogaram ácido em seu rosto porque ela rejeitara um pedido de casamento.

V_Sudershan
A sobrevivente Rukaiya interage com visitante no Sheroes Hangout
A sobrevivente Rukaiya interage com visitante no Sheroes Hangout

O Ministério do Interior indiano disse no Parlamento em 17 de abril de 2017 que 147 mulheres foram atacadas com ácido em 2015. O número é visto amplamente como sendo muito inferior à realidade, já que muitos ataques não chegam a ser denunciados à polícia.

Em 2016 foi promulgada uma lei nacional que reconhece um ataque com ácido como causa de invalidez, dando às vítimas o direito a receber apoio financeiro. Três anos antes disso, medidas legais específicas tinham sido acrescentadas ao código penal indiano instituindo uma pena mínima de dez anos de prisão para os perpetradores de ataques com ácido.

A Suprema Corte também havia feito uma intervenção anterior, em 2015, impondo restrições às vendas de ácido. A corte instruiu o governo a exigir que os compradores tenham no mínimo 18 anos e precisem fornecer documento de identidade oficial e com foto quando compram ácido. Mas as vendas clandestinas continuam, mesmo assim, e, segundo ativistas da campanha Acabar com os Ataques com Ácido, o ácido ainda custa pouco e é fácil de se adquirir.

Além disso, as sobreviventes têm dificuldade em acessar o fundo de apoio mínimo de 300 mil rúpias ao qual têm direito.

Essas medidas tomadas pelo governo podem dar alguma esperança às sobreviventes, mas, segundo ativistas da campanha, o número de vítimas ainda não está dando sinais de diminuir. Iniciativas como o Sheroes e as pessoas que o apoiam, indo ao café, exercem papel crucial.

Uma das frequentadoras regulares do café é Tanya Sharma, 21, candidata a funcionária pública. "Uma amiga me contou sobre o café e agora eu venho para cá sempre. A comida é muito boa e a hospitalidade melhor ainda", diz ela.

O gerente revela que o café recebe muitos frequentadores regulares que vivem em Agra, mas que a maioria dos frequentadores é formada por turistas estrangeiros. O Sheroes oferece culinária do norte da Índia e continental, mas o cardápio não cita os preços dos pratos. Os fregueses pagam quanto querem.

"Auferimos lucro na maior parte do ano, mas há meses de vacas magras. Nesses momentos, apelamos para o 'crowdfunding' [financiamento coletivo] para manter o café funcionando", diz o gerente.

Já é quase hora do almoço e um micro-ônibus chega ao café. Um grupo de turistas estrangeiros curiosos desce para almoçar. O grupo é conduzido por Anurag Shekhawat, 27, que trabalha para a agência de viagens canadense "g advertures".

Os turistas são recebidos por Madhu Kashyap, 37, sobrevivente de um ataque com ácido. Antes de anotar os pedidos, ela põe um documentário para tocar no televisor de tela grande do café. O documentário apresenta a história do Sheroes. Quando o vídeo termina, a canadense Suzanne enxuga lágrimas.

"Não consigo sequer imaginar a experiência horrível pela qual essas mulheres passaram, mas ver a força delas é empoderador", diz Suzanne.

Madhu chegou a cogitar o suicídio, até que alguém lhe indicou o Sheroes Hangout.

"Fiquei sabendo do Sheroes pela médica que me atendia", ela conta. "Desde que entrei para o grupo, minha vida mudou."

Tradução de CLARA ALLAIN


Endereço da página:

Links no texto: