Folha de S. Paulo


Raio-X resistente a intempéries quer ajudar países emergentes

Sylvain Liechti
Neste hospital, em Camarões, o raio-X foi instalado nos anos 1970 e não se sabe se ainda é seguro
Neste hospital, em Camarões, o raio-X foi instalado nos anos 1970 e não se sabe se ainda é seguro

Dois terços da população mundial não têm acesso a serviços de diagnóstico por imagem, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). Uma startup de Lausanne, na Suíça, quer mudar esse panorama, graças a um novo aparelho projetado especificamente para países em desenvolvimento.

O que um acidente de trânsito, uma pneumonia e uma fratura na perna têm em comum?

São problemas que requerem sistemas de diagnóstico por imagem para que um médico os diagnostique corretamente. Isso pode ser feito fácil e rapidamente caso o paciente viva em um país como a Suíça, mas a situação é muito diferente para alguém que viva no continente africano.

"Dois terços da população mundial continuam a não ter acesso a essa tecnologia, o que é inacreditável se considerarmos que os aparelhos de raio-X foram inventados mais de um século atrás", diz Bertrand Klaiber, fundador da Pristem.

Para enfrentar esse problema de saúde mundial, o empreendedor radicado em Lausanne quer produzir uma máquina de raio-X robusta e barata para os mercados emergentes.

Mas o que há de diferente entre essa ideia e os modelos já em uso em hospitais africanos e asiáticos hoje?

A diferença essencial é o projeto, que foi adaptado às condições e as dificuldades específicas desses hospitais. E isso muda tudo.

"Na maioria dos países da parte sul do planeta, os hospitais enfrentam escassez de recursos, cortes súbitos e frequentes de energia, inundações devido a chuvas torrenciais, bombardeios de terra e rajadas de vento, assim como calor intenso. Eles nada têm em comum com os hospitais assépticos e dotados de ar-condicionado que conhecemos e usamos. Nessas condições, a maquinaria projetada para e fabricada no norte do planeta rapidamente se deteriora. E porque não há peças sobressalentes ou pessoal de manutenção disponível, os aparelhos rapidamente se tornam inutilizáveis", diz Klaiber.

Sylvain Liechti
Criança passa por exame em aparelho de raio-X
Criança passa por exame em aparelho de raio-X

Na Africa subsaariana, até 70% do equipamento médico atualmente instalado está fora de operação.

Ao projetar uma máquina capaz de operar nessas condições, a Pristem estava começando do zero.

"Pedimos a nossos futuros usuários na África, muito familiarizados com as condições locais, que nos explicassem as suas necessidades, e integramos essas informações plenamente ao processo e desenvolvimento", diz Klaus Schonenberger, cofundador e presidente do conselho da Pristem.

Sob a direção do programa EssentialTech, do Centro para Cooperação e Desenvolvimento do Instituto Federal Suíço de Tecnologia (EPFL), em Lausanne, uma equipe de 35 pesquisadores e engenheiros –provenientes entre outras organizações da Universidade de Ciências Aplicadas do Oeste da Suíça (HES-SO), do Instituto Paul Scherrer e do Hospital Universitário de Lausanne (CHUV)– desenvolveu um protótipo.

O resultado de seu trabalho árduo é a máquina de raio-X GlobalDiagnostiX –projetada para suportar temperaturas de até 45 graus e umidade de 98%, bem como volumes elevados de poeira.

Os motores elétricos usados em países industrializados para movimentar os braços da máquina foram substituídos por um sistema mecânico e, para reduzir custos, a tecnologia digital substituiu os filmes de radiologia. Em caso de corte de energia, um gerador especialmente projetado permitirá que a máquina opere de maneira independente por algumas horas.

"O setor de equipamento médico sempre teve como foco a inovação, mas na África a prioridade é atender as necessidades básicas. Um paciente no hospital de Yaoundé, nos Camarões, não precisa da tecnologia mais recente. O que eles precisam, antes de tudo, é de equipamento que funcione. É isso que estamos oferecendo, e fornecer imagens de alta qualidade, de maneira confiável e sustentável, requer inventividade", afirma Bertrand Klaiber.

A Pristem está demonstrando originalidade também em seus contratos inclusivos.

"Acreditamos que exista mercado real para esse tipo de máquina", diz Klaus Schonenberger. "Mas oferecer preço de compra mais baixo e maior resistência aos elementos não é suficiente. Também precisamos garantir que haja manutenção."

Com custos anuais equivalentes a cerca de 10% do preço de compra, a manutenção de equipamento médico pode se provar dispendiosa, no longo prazo.

"Os governos muitas vezes compram ou ganham essas máquinas, fabricadas na Europa ou nos Estados Unidos, sem pensar no orçamento para manutenção regular ou sem contratar pessoal que cuide delas. Nosso modelo, porém, inclui garantia de seis anos, algo único no setor. Onde houver conexão de internet, será possível monitorar o estado dos aparelhos remotamente e oferecer ajuda ao pessoal local para que conduza manutenção preventiva e testes. A internet também permitirá serviços remotos de radiologia com o uso da nossa tecnologia, o que pode se provar vital em áreas nas quais haja escassez de especialistas médicos", afirma Schonenberger.

Em termos de números, o projeto de Klaiber planeja criar 400 empregos na África e 25 na Suíça.

"A questão não é só econômica, mas também ideológica. Deixei meu emprego em marketing porque precisava reencontrar um significado para a vida. Hoje tenho a satisfação de dizer a mim mesmo que meu trabalho serve a um propósito. É claro que não pretendemos criar uma máquina para a África sem incluir a África. Por isso formamos uma conexão estreita com um centro hospitalar nos Camarões, para que não esqueçamos qualquer elemento crucial", diz Schonenberger.

O projeto tem benefícios potenciais para as populações e governos locais, além dos hospitais. Investidores africanos e suíços embarcaram na ideia da Pristem. A startup precisa de US$ 10 milhões (cerca de R$ 33 milhões) para colocar seu produto no mercado –e já obteve metade do capital necessário.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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