Folha de S. Paulo


Atual diretor do Instituto Butantan fez parte de auditoria que suscitou crise

Rogerio Cassimiro/Folhapress
Fábrica de hemoderivados do Butantan, que já recebeu investimentos de mais de R$ 200 milhões mas não funciona
Fábrica de hemoderivados do Butantan, que recebeu mais de R$ 200 milhões mas não funciona

O recém-empossado diretor do Instituto Butantan, o hematologista e professor da USP de Ribeirão Preto Dimas Tadeu Covas, escreveu, a pedido de uma auditoria encomendada pela Secretaria da Saúde, um relatório sobre a produção de hemoderivados do Butantan. No texto, defendia a produção de um fármaco do qual possui a patente.

A divulgação dos resultados do relatório desencadeou a crise institucional do Butantan, que incluiu a queda do ex-diretor Jorge Kalil.

A fábrica de hemoderivados já recebeu investimentos de mais de R$ 200 milhões, mas, nove anos depois, ainda está sem previsão de funcionar –por problemas tanto na parceria com empresas estrangeiras quanto por falta de matéria-prima (plasma, proveniente de sangue doado e usado para fabricar o fármaco fator 8, para hemofilia).

Segundo o documento, mesmo que a processamento brasileiro de plasma estivesse funcionando a todo vapor (teoricamente 650 mil litros de plasma ao ano), a quantidade de fator 8 ainda estaria aquém do necessário.

No relatório, a solução defendida por Covas é a produção de fator 8 recombinante –ou seja, sem a necessidade de sangue. A proposta, porém, é mal vista por alguns pesquisadores do Butantan, porque investir nessa alternativa poderia agravar ainda mais a situação da fábrica de hemoderivados do instituto, tornando-a obsoleta e deixando passar a oportunidade de gerar inovação.

O relatório da auditoria de 2015, da empresa Colorado Consultoria Empresarial Ltda., afirma que os fatores recombinantes "vão substituir integralmente os fatores derivados de plasma nos próximos anos" e que "várias patentes desenvolvidas pela USP poderiam colocar o país na vanguarda mundial no setor".

No mesmo ano, Covas e outros três colegas obtiveram o registro de uma patente (US 8969041 B2) para a produção de fator 8 recombinante a partir de cultura de células humanas. A patente é de propriedade da USP e da Fundação Hemocentro de Ribeirão Preto, que foi dirigida por Covas.

No relatório, consta que a "possibilidade [de produzir fatores recombinantes] foi oferecida ao [ex] diretor do Butantan, prof. [Jorge] Kalil, sem que, no entanto, nada de concreto fosse desenvolvido."

Continua: "A questão dos fatores recombinantes tem que ser incluída no planejamento de qualquer planta [industrial] que pretenda atuar na área de hemoderivados. No anexo 2 apresentamos um documento que trata do assunto". O anexo 2 é assinado por Covas.

O Butantan, em nota, afirma que a planta da fábrica foi inicialmente pensada para o fracionamento de plasma. "Estamos buscando saídas que viabilizem economicamente a unidade, trazendo benefícios diretos para a instituição e para todo o Estado de São Paulo."

Para a Secretaria da Saúde, não há base para supor que Covas sairia beneficiado por causa da patente, já que "o Instituto Butantan não produzirá fator 8 recombinante e nenhum outro".

É o oposto do que recomenda a auditoria, que foi contratada em regime de urgência pela Secretaria da Saúde, ao custo de R$ 500 mil.

CRISE

Antes de Covas, o diretor do Butantan era o imunologista e professor da USP Jorge Kalil, que, entre 2012 e 2015, acumulou o cargo com o de presidente da Fundação Butantan, que cuida das finanças do instituto.

Segundo a Secretaria da Saúde, a auditoria da Colorado foi responsável por findar a era de "duplo comando" de Kalil, fazendo com que ele deixasse a presidência da fundação e indicasse seu então amigo André Franco Montoro Filho, administrador e professor da USP para o posto.

Montoro Filho disse à Folha que estava preocupado com a legalidade das atividades da fundação, mas que não foi possível continuar o trabalho por causa das pressões de Kalil, "que era péssimo gestor", e da diretoria da fundação para assinar parcerias e convênios sem poder opinar.

Ele saiu da presidência no começo de fevereiro, mas não sem deixar uma carta expondo as irregularidades apontadas pela auditoria. "Aquele foi meu testamento."

O fim da era Kalil, que desde 2011 comandava o Butantan, veio em 21 de fevereiro. Mesmo com o apoio ao imunologista no meio acadêmico, a Secretaria de Saúde, comandada por seu ex-amigo David Uip, resolveu exonerá-lo por causa de uma tentativa de Kalil, segundo a secretaria, na prática, de voltar a tentar comandar a Fundação com mudança de estatuto.

"Além disso, a Secretaria tomou conhecimento que o professor Kalil encaminhou à Casa Civil [...] anteprojeto de lei que transformaria o Instituto Butantan em uma autarquia especial completamente independente. Ou seja, flagrantemente dois atos graves e inadmissíveis de insubordinação."

Kalil não foi encontrado para comentar o assunto.

PUNIÇÃO

Outro punido foi o pesquisador Marcelo de Franco, que foi transferido para o pequeno Instituto Pasteur, que tem pesquisas ligadas à raiva e doenças relacionadas. Franco tem linha de pesquisa relacionada a artrite e inflamação.

"Ele também assinou o documento do projeto de lei [...] que pretendia transformar o instituto em uma autarquia especial e independente. Sua transferência ao Instituto Pasteur foi, portanto, uma decisão administrativa.", afirma a Secretaria da Saúde, em nota.

Segundo Joaquim Adelino de Azevedo Filho, presidente da Associação dos Pesquisadores Científicos do Estado de São Paulo, o caso de Franco é "anormal".

"Se ele fez algo errado, tem de ser investigado. É errado colocar o pesquisador em local onde ele não vai conseguir desenvolver suas atividades e funções adequadamente. Além disso, a população também é prejudicada pelo baixo desempenho: ele está deixando de produzir os benefícios para a sociedade como seria capaz."

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LINHA DO TEMPO

Entenda a crise institucional do Butantan

1991 - 1997 O médico e professor de bioquímica da USP Isaias Raw dirige o Instituto Butantan

1998 Isaias Raw começa a presidir a Fundação Butantan, que apoia as atividades do instituto e que pode vender as vacinas e outros produtos

2008 Início da construção de fábrica de hemoderivados do Butantan; são gastos R$ 239 milhões

set.2009 Promotoria aponta desvio de mais de R$ 30 milhões na Fundação Butantan; tesoureiro é tido como suspeito

out.2009 Isaias Raw é afastado da direção da Fundação Butantan para permitir que investigações sejam realizadas

2011 Jorge Kalil assume direção do Instituto, apontado pelo secretário da Saúde à época, Giovanni Cerri

2012 Jorge Kalil assume a presidência da Fundação Butantan, sem deixar o cargo de diretor do Instituto, 'unificando' o poder

2015 Após pressão do secretário da Saúde David Uip, Kalil sai da Fundação; André Franco Montoro Filho é escolhido como novo diretor

2015 Auditoria encomendada pelo governo Alckmin aponta irregularidades no Butantan; no documento, Dimas Tadeu Covas, da USP de Ribeirão Preto, escreve parecer crítico sobre fábrica de hemoderivados

8.fev.2017 André Franco Montoro Filho deixa presidência da Fundação, alegando uma série de problemas encontrados pela auditoria, que foi realizada pela empresa Colorado Consultoria Empresarial Ltda.

20.fev Reportagem da Folha mostra paralisia da fábrica de hemoderivados; há falta de sangue, que pertence à União e que preferencialmente é destinado à estatal Hemobrás

21.fev Governo Alckmin decide afastar Jorge Kalil da direção do Instituto; pesquisadores e funcionários protestam

22.fev Dimas Tadeu Covas é escolhido por David Uip para ser novo diretor do Instituto

23.fev Reportagem da Folha mostra que havia mágoa antiga entre David Uip e Jorge Kalil; ambos dão entrevista ao jornal. Uip disse que havia divergência no quesito gestão; Kalil disse que foi punido sem motivo

23.fev Promotoria denuncia 11 pessoas por furtos no total R$ 33,5 milhões da Fundação Butantan realizados na gestão de Isaias Raw

17.mar Marcelo de Franco, pesquisador do Butantan e braço direito de Kalil, é transferido pelo governo Alckmin, para o Instituto Pasteur


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