Folha de S. Paulo


Micro-organismos travam 'corrida armamentista' para se alimentar

Revista "Science Advances"
O “arpão” nematocisto disparado
O “arpão” nematocisto disparado

Uma insuspeita corrida armamentista nos oceanos foi flagrada agora por uma equipe de cientistas. Não são submarinos armados com mísseis balísticos, canhões de tiro rápido ou blindagens passivas ou reativas, como a indústria bélica do ser humano produziu. Os responsáveis são minúsculos micróbios que existem há milhões de anos, os "inventores" dessas armas.

É o caso do "míssil balístico" disparado debaixo d'água. O míssil fica armazenado verticalmente em um silo no submarino. Uma escotilha se abre e o míssil é lançado graças a ar comprimido, ligando seus motores ao sair da água.

Os pequenos dinoflagelados –organismos primitivos de apenas uma célula– têm seu próprio "silo", uma cápsula contendo o projétil, também armazenado verticalmente. A cápsula é fechada em cima por uma "escotilha", o opérculo.

Quando a parede da cápsula de contrai, especulam os cientistas, a pressão interna força para fora um estilete –o "míssil". O estilete é ejetado e perfura a presa, um outro micróbio. Dentro da cápsula logo abaixo fica um túbulo enrolado que também é projetado para fora, no processo abrindo o opérculo.

"O papel do estilete não é apenas perfurar a presa, mas também perfurar primeiramente a cápsula a partir de dentro, libertando desse modo o túbulo enrolado. O túbulo deve passar através de dois anéis concêntricos na nova 'base do estilete', depois através do centro do bocal. À medida que o túbulo sai através desta passagem, força o opérculo a abrir e depois se desenrola. Uma vez disparado, o túbulo balístico gradualmente se dissolve", descreveram os pesquisadores liderados por Gregory Gavelis, da Universidade da Colúmbia Britânica em Vancouver, Canadá.

O estudo foi publicado na revista científica "Science Advances".

O pequeno órgão usado como arma, ou "organela", é conhecido como nematocisto. Ele funciona, na verdade, como um "arpão", pois a vítima fica presa ao dinoflagelado por um filamento ligado ao estilete. E, continuando a comparação com o submarino, existem torpedos que são ligados a ele por um fio através do qual são passadas informações sobre o alvo.

Os pesquisadores achavam que esse era o papel do túbulo, mas puderam ver que ele na verdade também pode participar da perfuração do alvo. A "corda" que prende o arpão sai de outro ponto do nematocisto.

"Também gravamos os primeiros vídeos de alta resolução de descargas de nematocistos em dinoflagelados", afirmam Gavelis e colegas; os vídeos ajudaram a criar reconstruções tridimensionais dos nematocistos. A equipe também mostrou que o mecanismo de ataque dos dinoflagelados surgiu de modo independente de "armas" semelhantes típicas de alguns animais invertebrados cnidários, como corais, anêmonas e medusas.

"Inesperadamente, nossos dados sugerem que diferentes tipos de nematocistos dinoflagelados usam dois tipos fundamentalmente diferentes de mecanismos balísticos: um tipo depende de uma única cápsula pressurizada para propulsão, enquanto o outro tipo lança 11 a 15 projéteis a partir de um arranjo semelhante a um canhão Gatling", declaram os pesquisadores.

O sistema Gatling –empregado tanto em canhões como metralhadoras– usa um conjunto de vários canos rotativos para disparar em tiro rápido. As metralhadoras do sistema usadas na segunda metade do século 19 usavam uma manivela para disparar entre 200 a 400 tiros por minuto. Um moderno canhão Gatling –um dos quais é usado em navios para abater mísseis inimigos– pode disparar 6.000 tiros por minuto.

A equipe de Gavelis mostrou o uso da cápsula pressurizada entre dinoflagelados criados em laboratório da espécie Polykrikos kofoidii; já os micróbios coletados na natureza do gênero Nematodinium usam o "sistema Gatling".

Mas as presas não são vítimas totalmente desprotegidas. Elas podem usar uma espécie de carapaça para tentar evitar a penetração pelo "arpão", uma forma de "blindagem passiva".

Ou então podem usar uma forma de "blindagem reativa" semelhante à usada em tanques de guerra. Os tanques usam blocos explosivos para tentar afastar o projétil inimigo pela explosão. Já os micróbios usam verdadeiras rajadas defensivas de "extrussomas", organelas que se projetam na direção do arpão para evitar a penetração.

A equipe conclui que esclarecer a interação entre predadores dinoflagelados e suas presas será ecologicamente relevante, "porque o Polykrikos modula as populações de importantes organismos planctônicos incluindo o dinoflagelado blindado Alexandrium tamarense, que está entre os agentes mais prevalentes de florescimento de algas tóxicas".


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