Folha de S. Paulo


Site reúne línguas e sotaques do mundo; conheça iniciativas brasileiras

Francois Bester/Flickr

A curiosidade de mochileiro levou o engenheiro de software David Ding, ex-funcionário da Microsoft, a criar o site "Localingual" (https://localingual.com ), um mapa-múndi no qual é possível clicar em cada país, e nas regiões e cidades de cada nação, para ouvir o sotaque local.

Para especialistas entrevistados pela Folha, a iniciativa tem potencial para virar uma excelente base de dados sobre a diversidade linguística do planeta, mesmo que alguns engraçadinhos da internet baguncem a amostragem de vez em quando.

"Por enquanto, o material no site ainda é pouco, mas a tendência é que, com mais dados, ele vá se enriquecendo e se transforme, no mínimo, numa ferramenta pedagógica útil. Já achei até umas coisas interessantes nos dialetos da região sul de Portugal", diz Édson Reis Meira, professor da UFMA (Universidade Federal do Maranhão) que traduziu a comédia "Lisístrata", do dramaturgo ateniense Aristófanes, do grego antigo para os dialetos do sul da Bahia e de Pernambuco.

Editoria de Arte/Folhapress

"A iniciativa é extremamente positiva, e boa parte da pesquisa científica começa pela curiosidade. É algo que pode aguçar o interesse das pessoas por essa diversidade de dialetos e sotaques, e a possibilidade de acesso via internet facilita muito a disseminação dos dados", analisa Renato Miguel Basso, linguista do Departamento de Letras da UFSCar (Universidade Federal de São Carlos).

A interface do Localingual não poderia ser mais simples. Diante do mapa do planeta, o visitante clica no país de interesse. Outro clique mostra as regiões, Estados ou províncias. Mais um clique na área desejada mostra se há gravações de palavras ou frases naquela região, enviadas pelos próprios internautas.

Cada palavra ou frase aparece ainda na forma escrita, na língua local e também em inglês. Dá para curtir ou "descurtir" determinada gravação e também saber de antemão se ela está em voz feminina ou masculina.

Como a plataforma é colaborativa, gente com espírito de porco obviamente já andou fazendo das suas por ali. Sotaques da Escócia, no Reino Unido, por exemplo, muitas vezes foram substituídos por gente emitindo grunhidos. Ding declarou à revista "Wired" britânica que implementou um sistema automático de aviso: quando uma gravação atinge certo número de "descurtidas", ela é apagada.

O criador do site não respondeu aos pedidos de entrevista da reportagem da Folha. Talvez esteja ocupado procurando emprego - no final da breve descrição das origens do site, Ding diz que está "sem trabalho e sem residência fixa" e oferece seus serviços como programador a quem se interessar. Também é possível fazer doações para a plataforma.

DIALETOS E SOTAQUES

Apesar desses problemas, a plataforma já traz dados tanto sobre dialetos quanto sobre sotaques diferentes mundo afora. Segundo Meira, a fronteira tradicionalmente adotada para separar dialetos de um mesmo idioma de línguas diferentes é a compreensão mútua: em princípio, falantes de dois dialetos devem ser capazes de se entender entre si.

"Ao mesmo tempo, cada dialeto tem características únicas em todos os níveis de análise" - como variações na gramática, no vocabulário e nos sons de vogais e consoantes. Sotaques, por outro lado, são basicamente uma questão de variação sonora, como a pronúncia da palavra "tio", que soa como "tchio" em várias partes do Sudeste enquanto apresenta um "t puro" em boa parte do Nordeste.

Para o pesquisador da UFMA, seria interessante incentivar quem participa do site a pronunciar frases que ilustrem características típicas de seus dialetos, como detalhes peculiares de sua gramática. Outra forma potencialmente útil de padronização seria pedir que os falantes da mesma língua gravassem sempre a mesma frase, opina Basso, da UFSCar.

"LÍNGUAS" BRASILEIRAS

Embora o Localingual tenha ambições globais, uma série de projetos importantes têm mapeado a diversidade de dialetos e sotaques em nível nacional. Um marco dessa área no Brasil foi nos anos 1970, com a criação do Nurc (Projeto Norma Urbana Oral Culta), que gravou pessoas conversando ou dando aulas e palestras em algumas das principais capitais do país.

"Esse acervo está um pouco datado, mas ainda é muito importante, e boa parte dele pode ser encontrado online", diz Basso. (Gravações da amostragem carioca podem ser ouvidas no endereço www.letras.ufrj.br/nurc-rj.)

A partir de 1996, linguistas de todo o país uniram forças no projeto Alib (Atlas Linguístico do Brasil), que entrevistou 1.100 pessoas em 250 cidades de todos os Estados brasileiros. O atlas foi publicado em 2014, em dois volumes, e pesquisadores de cada Estado também têm trabalhado numa versão regional, diz Meira.

Para quem sabe inglês e deseja examinar de modo detalhado como as línguas do planeta funcionam, Basso sugere uma visita ao site do Wals (sigla inglesa de Atlas Mundial de Estruturas Linguísticas), no endereço wals.info.

"Muita gente pensa, por exemplo, que todas as línguas do mundo têm artigo definido", exemplifica o pesquisador - coisas como a palavra "o" na expressão "o menino". "Na verdade, muitas não têm." O site do Wals coloca essas e muitas outras características no mapa-múndi, de forma relativamente fácil de entender e rastrear.


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