Folha de S. Paulo


Domínio sobre o genoma avançou, mas houve frustrações no caminho

"Como uma coisa tão linda pôde dar tão errado?". O médico Siddhartha Mukherjee ouviu esse questionamento angustiado em 2014, 15 anos depois da morte inesperada do jovem americano Jesse Gelsinger num teste clínico que deveria ter consagrado o potencial da terapia gênica –cujo objetivo é alterar o DNA dos pacientes e curar doenças.

Gelsinger, então com 18 anos, sofria de uma doença causada por uma mutação no gene OTC, importante para o metabolismo de proteínas.

Se não seguisse uma dieta milimetricamente calculada e não tomasse mais de 30 comprimidos por dia, o rapaz morreria envenenado pelo acúmulo de amônia no cérebro (chegou a entrar em coma após comer um sanduíche de manteiga de amendoim aos quatro anos).

Por isso, Gelsinger e sua família se empolgaram com a proposta de um tratamento inovador para o problema –o uso de um adenovírus, patógeno comum que causa resfriados, para inserir a versão consertada do gene OTC no DNA do jovem, corrigindo o metabolismo.

Essa ideia elegante, a "coisa tão linda" a que se referia o pai de Jesse, Paul Gelsinger, acabou se revelando catastroficamente errada. Tudo indica que Jesse já tinha tido contato com outra forma de adenovírus, e a "memória" do sistema de defesa de seu organismo levou a uma reação exagerada e autodestrutiva que o matou em poucos dias.

A morte trágica de Jesse Gelsinger é uma das muitas histórias que fazem jus ao subtítulo do novo livro de Mukherjee, "O Gene: Uma História Íntima", que acaba de chegar ao Brasil.

A obra é, em parte, uma aventura intelectual: o relato de como, em menos de 150 anos, a humanidade deixou para trás a ignorância completa sobre a hereditariedade e hoje a manipula com cada vez mais precisão. Por outro lado, o autor não esconde em nenhum momento a coleção de preconceitos, crueldades e incertezas que o estudo da genética suscitou e ainda suscita.

Seria confortador imaginar que o lado negro do estudo dos genes é algo que fede a naftalina, idiotices dos defensores do darwinismo social do século 19 ou sadismo de nazistas dos anos 1930 e 1940 (os quais, aliás, produziram pouquíssimo conhecimento relevante no assunto).

Seria, se luminares como o britânico Francis Crick (1916-2004), codescobridor da estrutura do DNA, vencedor do Nobel e um dos cientistas mais brilhantes de todos os tempos, não se sentisse à vontade para dizer que "nenhum recém-nascido deveria ser declarado humano até ter passado em certos testes de dotação genética".

SABER E CONTROLE

Com efeito, uma das lições da narrativa de Mukherjee, oncologista indiano-americano da Universidade Columbia (EUA), é que a busca pelos segredos da hereditariedade quase sempre foi acompanhada pelo desejo de controlá-la, seja da maneira tosca advogada pelos eugenistas do século passado ou da maneira mais sutil e menos eticamente problemática dos biólogos moleculares de hoje.

Para ser justo, os delírios de "purificação" ou "melhoramento" da espécie humana são uma parte relativamente pequena dessa saga.

Conforme a distância entre pesquisas básicas aplicadas foi ficando mais curta, nos anos 1970, e os truques indispensáveis para manipular diretamente o DNA finalmente foram sendo dominados, os estudos deram frutos basicamente benignos para a saúde humana (como a produção de insulina com mais eficiência em "fábricas" microbianas), para o bolso de investidores mais ousados ou para ambos.

Ao mesmo tempo, é importante enfatizar que, quanto mais sabemos sobre o genoma, mais estonteante parece sua complexidade. A própria definição clássica de gene –um trecho de DNA que contém o código para a produção de uma proteína, a partir de um código intermediário representado pelo RNA, "primo" do DNA– está ridiculamente longe de abarcar tudo o que acontece no genoma.

O "mesmo" gene, para começo de conversa, pode ser editado de maneiras diferentes pela célula, gerando versões de RNA –e proteínas– com funções distintas.

O próprio RNA frequentemente não chega a virar receita de uma proteína, mas desempenha funções próprias e essenciais, como defender a célula da invasão de vírus.

Certos trechos do DNA nunca chegam a ser transcritos –ou seja, não servem de molde ao RNA– e parecem perdidos em regiões remotas do genoma, mas são essenciais para ligar ou desligar genes em órgãos ou fases específicas do desenvolvimento dos seres vivos.

O tamanho e a complicação das redes de interação dentro do genoma –para não falar da interface delas com o ambiente em que cada pessoa está inserida, da barriga da mãe ao asilo de idosos– sugere fortemente que não há soluções mágicas para a maior parte dos problemas biológicos que nos afligem.

Formas de terapia gênica bem mais sofisticadas que a que vitimou Jesse Gelsinger certamente aparecerão, mas a ideia de reescrever do zero o "Livro da Vida" humano muito provavelmente continuará a ser miragem.

O GENE: UMA HISTÓRIA ÍNTIMA
AUTOR Siddhartha Mukherjee
EDITORA Companhia das Letras
QUANTO R$ 69,90 (680 págs.)


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