Folha de S. Paulo


Pesca é relacionada com o Universo em novo livro de físico brasileiro

Joseph/Flickr
Pesca é relacionaDa escolha da isca ao controle delicado do pulso e dos braços para lançar direito a linha, é quase um namoro com o peixeda ao Universo
A pesca fly é quase um namoro com o peixe

"Rapaz, confesso que pensei em trazer uma vara de pescar aqui para explicar melhor como é a técnica, mas neste espaço não ia dar muito certo", diz o físico carioca Marcelo Gleiser, 57, ao falar sobre sua paixão pela pesca fly para um auditório lotado na sede da Folha, em São Paulo, na segunda-feira (24).

Gleiser resolveu usar a arte da pesca fly e suas viagens pelo planeta (da Serra Gaúcha à Islândia) em busca de peixes desafiadores como mote de seu novo livro, "A Simples Beleza do Inesperado" (editora Record).

O pesquisador do Dartmouth College (EUA) compara a obra a "Zen e Arte da Manutenção de Motocicletas", do americano Robert Pirsig, que é um clássico da literatura de não ficção do gênero "pé na estrada", na qual a experiência de viajar leva o autor a abordar questões filosóficas espinhosas, como a dicotomia entre razão e intuição.

A Simples Beleza Do Inesperado
Marcelo Gleiser
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"De fato, há algo de zen na pesca fly, que é totalmente diferente da pesca tradicional com chumbada que a maioria das pessoas conhece no Brasil", diz Gleiser, que já foi colunista da Folha e hoje é colaborador do jornal.

Da escolha da isca –em geral, uma simulação artesanal dos insetos e moluscos que os peixes querem abocanhar– ao controle delicado do pulso e dos braços para lançar direito a linha, é quase um namoro com o peixe. Alguns pescadores evitam até que o anzol tenha rebarbas capazes de machucar demais a boca do bicho capturado.

Modalodade Zen

INCOMPLETUDE

Editoria de Arte/Folhapress

Os peixes e seu comportamento imprevisível, é claro, também servem como símbolo da relação dos cientistas (e dos seres humanos de maneira geral) com o Universo, e de como o autor propõe que essa relação seja transformada.

Nesse sentido, "A Simples Beleza do Inesperado" pode ser lido como uma espécie de reencarnação narrativa e autobiográfica de dois dos livros anteriores de Gleiser, "A Ilha do Conhecimento" (de 2014) e "Criação Imperfeita" (de 2010). A exemplo do que fez nas obras anteriores, ele procura mostrar que talvez existam limitações intrínsecas no que diz respeito à capacidade humana de entender como o Universo funciona.

Para explicar isso, Gleiser recorre à metáfora da "ilha do conhecimento": uma massa de terra mapeada cercada pelo oceano do desconhecido por todos os lados.

Avançar rumo aos mares nunca dantes navegados do conhecimento faz com que a área de terra firme da ilha aumente, mas o paradoxo é que esse processo também produz mais águas do oceano do desconhecido que os exploradores nem imaginavam que existiam antes de sair de casa.

E isso é ótimo, argumenta o pesquisador: um Universo sobre o qual a última palavra já foi pronunciada no passado deixaria de nos seduzir como fonte de mistério e aventura, tornando-se um lugar entediante para seus habitantes.

Não que o perigo de "saber tudo sobre tudo" seja real, segundo Gleiser. Para ele, esse tipo de conhecimento totalizante esbarra em impossibilidades lógicas. Não haveria como conhecer o Universo como um todo sem estar fora dele, nem como prever todos os fenômenos que dependem da mecânica quântica, o ramo da física que descreve o comportamento das partículas subatômicas e que lida apenas com probabilidades.

Esses detalhes fazem com que a busca por uma teoria capaz de unificar todos os fenômenos cósmicos numa única descrição matemática tenha se tornado, de certo modo, mais uma fé religiosa –"um monoteísmo científico", nas palavras do físico –do que uma atitude racional.

Gleiser é cético quanto à possibilidade de elucidar cientificamente como a vida surgiu na Terra ou de encontrar outras civilizações inteligentes Cosmos afora. "Não que não valha o investimento: é como ganhar na loteria. É muito difícil, mas se você não jogar na loteria, aí é que não vai ganhar mesmo", diz.

Por outro lado, argumenta o pesquisador brasileiro, se os dados estão sugerindo que a vida (e em especial a vida complexa e inteligente) é uma raridade cósmica, é imperativo que uma cultura de respeito a todos os seres vivos se fortaleça na Terra.


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