Folha de S. Paulo


Pesquisa sobre máquinas moleculares ganha Nobel de Química

Patrick Hertzog/AFP - Jim Young/Reuters Reprodução
Os ganhadores do Nobel de Química 2016
Os ganhadores do Nobel de Química 2016

Pães marcaram presença, pelo segundo dia seguido, no Prêmio Nobel. Aparentemente, pretzels e bagels (um tipo de rosca turbinada) servem de ótimas metáforas para físicos e químicos. Além do dono de alguma padaria sueca, três pesquisadores acordaram mais felizes e com mais dinheiro: Jean-Pierre Sauvage, J. Fraser Stoddart e Bernard L. Feringa ganharam o Nobel de Química de 2016 pelo design e síntese de máquinas moleculares, as menores do mundo.

As descobertas, que ainda estão em um período inicial de pesquisa, poderão ser importantes, por exemplo, na medicina. O transporte de medicamento por nanorobôs é uma das possibilidades. Além disso, avanços na computação e materiais inteligentes, que respondem a estímulos, são outras possibilidades.

Os responsáveis pelo anúncio dos vencedores do prêmio usaram, mais uma vez, as formas cilíndricas dos pães para explicar como funcionam as máquinas moleculares.

Feringa comparou seus estudos ao começo da aviação. "Perguntavam para que precisaríamos de máquinas que voam."

"É o começo de uma nova era", afirma Feringa.

Os vencedores dividirão 8 milhões de coroas suecas (pouco mais de R$ 3 milhões). O dinheiro é proveniente de um fundo (de mais de 4 bilhões de coroas suecas, ou R$ 1,52 bilhão, em valores atuais) deixado por Alfred Nobel. Além do valor em dinheiro, o laureado recebe uma medalha e um diploma.

FRONTEIRA DAS MÁQUINAS HUMANAS

As máquinas moleculares recebem esse nome porque, além de serem construídas molécula por molécula, não conseguem se mover por conta própria. Elas, como todas as máquinas que conhecemos, até o momento pelo menos, só funcionam pela vontade e intervenção humana.

Como qualquer ligar ou desligar de computador, tudo ali só funciona porque nós damos uma ordem.

Os comandos que usamos nas máquinas moleculares são um pouco menos diretos ou lógicos, se comparados às interfaces digitais a que estamos acostumados.

As nanomáquinas, quase mil vezes menores que um fio de cabelo, assim como as moléculas do nosso corpo, são sensíveis a luz, calor, ph e cargas positivas e negativas. Com esses estímulos, elas podem se mover, mudar de forma ou ter outros comportamentos.

"O futuro está chegando", afirma animado Henrique Toma, coordenador do centro de nanotecnologia da USP e estudioso do tema há 30 anos. Ele compara o trabalho dos laureados e o seu próprio com uma "brincadeira" de montar lego.

EVOLUÇÃO

Os avanços no campo da nanotecnologia deram um gigante salto quando, em 1983, Jean-Pierre Sauvage, da Universidade de Strasbourg, na França, e seus colegas conseguiram unir duas moléculas circulares, formando uma corrente conhecida como catenano.

O próximo passo veio com J. Fraser Stoddart, em 1991, da Universidade de Northwestern, nos EUA. O pesquisador e seu grupo demonstraram a possibilidade de mover um anel molecular ao longo de um eixo. Conseguiram inclusive construir um "elevador molecular" com a técnica desenvolvida.

Finalmente, em 1999, Bernard L. Feringa, da Universidade de Groningen, nos Países Baixos, apresentou ao mundo a possibilidade do movimento controlado unidirecional, algo típico dos mecanismos de rotação de motores.

O grupo de Feringa conseguiu inclusive construir um "nanocarro", com um chassi molecular e quatro mecanismos de rotação, as rodas moleculares, que se movimentavam em uma única direção.

Os trabalhos, contudo, não pararam nesse ponto. O grupo de Stoddart, por exemplo, passou a tentar desenvolver mecanismos eletrônicos em escala molecular. E, até certo ponto, conseguiram.

Em 2007, construíram um mecanismo molecular com função de memória. A minúscula máquina conseguia replicar a ideia de portas lógicas, algo parecido à forma como nossos computadores funcionam.

FUTURO DA COMPUTAÇÃO

O mundo hoje depende do silício para fabricação dos corações dos chips com os quais conversamos com amigos e trabalhamos.

Para o funcionamento simples de um chip, gravar um "sim" ou "não", são usados cerca de um bilhão de átomos de silício, segundo Henrique Toma.

"Com as máquinas moleculares, você poderia pegar dezenas ou centenas de átomos e fazer a mesma coisa", diz Toma.

O pesquisador acredita no surgimento de um novo conceito de eletrônica a partir dos conhecimentos que cercam o tema laureado no Nobel de Química de 2016.

"No futuro é possível que todo sistema de memória ou processamento seja molecular", afirma. "Pode anotar, eu aposto tudo nisso."

Os tecidos inteligentes também são uma aposta promissora.

Divulgação
Marty Mcfly (Michael J. Fox) consegue adaptar o tênis ao tamanho de seu pé
Marty Mcfly (Michael J. Fox) consegue adaptar o tênis ao tamanho de seu pé

De forma semelhante ao tênis e às roupas de Marty McFly, no filme "De Volta para o Futuro", tecidos poderiam se adaptar às condições externas. "Quando está muito abafado, a roupa poderia se expandir. Se precisasse aquecer, ela se contrairia."

MEDICINA

As máquinas moleculares também podem ter impacto em tratamentos de doenças. Como essas engenhocas funcionam a partir de estímulos, elas podem servir para atingir com maior precisão o local onde se encontram problemas de saúde, como tumores.

Fazendo jus ao nome, as pequeninas máquinas poderiam ter a habilidade de produzir sinais orgânicos para conseguir passar por certos lugares.

"Você poderia sinalizar para conseguir uma abertura na barreira hematoencefálica [escudo cerebral que acaba dificultando a chegada de medicamentos], por exemplo", afirma Antonio Tedesco, coordenador do centro de nanotecnologia e engenharia tecidual da USP de Ribeirão Preto.

Além disso, também há vantagens na possibilidade de atingir áreas pequenas e específicas do organismo. "Você pode usar pequenas quantidades de princípio ativo para cobrir grandes áreas afetadas por uma patologia", diz Tedesco.

O pesquisador alerta que, mesmo com esses pontos positivos, deve-se tomar muito cuidado e ter atenção quanto aos impactos ambientais, quem estará envolvido na produção dessas máquinas e como elas serão usadas.

HISTÓRICO

O Nobel de Química é entregue ao responsável pela "descoberta ou aperfeiçoamento químico mais importante", como consta no testamento de Alfred Nobel (1833-1896), inventor da dinamite e pai da premiação. A química foi a área do conhecimento mais importante para o trabalho do criador do prêmio.

Desde o início da premiação em 1901, o prêmio de química foi distribuído 107 vezes para 171 pessoas. Somente quatro mulheres foram premiadas até o momento na categoria. A bioquímica, com 50 premiações, lidera o ranking dos temas abordados pelos vencedores.

O Nobel de Química deixou de ser entregue oito vezes (1916, 1917, 1919, 1924, 1933, 1940, 1941 e 1942). As duas guerras mundiais estão entre os fatores que explicam a ausência de prêmios nesses anos.

Algumas das descobertas premiadas durante a história são: desintegração de elementos e radioatividade de substâncias (Ernest Rutherford); descoberta e trabalho com os elementos químicos rádio e polônio (Marie Curie); química atmosférica, composição e decomposição da camada de ozônio (Mario J. Molina); e ligações químicas e compreensão da estrutura de substâncias complexas (Linus Pauling).

Motor Molecular

NOBEL 2015

Os ganhadores do ano passado do Nobel de Química foram Tomas Lindahl, Paul Modrich e Aziz Sancar, responsáveis por estudos relacionados aos mecanismos de reparo de DNA.

Os estudos dos cientistas abriram a "caixa de ferramentas de reparação do DNA". Graças a isso, foi possível entender, em nível molecular, como as células danificadas consertam o DNA e conservam a informação genética.

O trabalho deles produziu conhecimento fundamental de como células vivas funcionam e, desse modo, ajudou no desenvolvimento de novos tratamentos contra o câncer.

NOBEL DE MEDICINA

Pela pesquisa sobre como a autofagia funciona, Yoshinori Ohsumi, 71, foi laureado com o Nobel de fisiologia ou medicina nesta segunda (3).

A autofagia está relacionada ao reaproveitamento do "lixo celular". Por isso mesmo, a falha do processo acaba levando a doenças, como diabetes e câncer. A função está intimamente ligada à organela lisossomo.

O câncer, a resposta celular a infecções bacterianas e virais, formação do embrião e surgimento de novas células, resposta à falta de nutrientes, doenças neurodegenarativas e diabetes estão relacionados à autofagia. Ohsumi conseguiu identificar os 15 genes da autofagia e caracterizar cada estágio do processo.

NOBEL DE FÍSICA

O prêmio de física deste ano foi para David J. Thouless, Frederick Duncan M. Haldane e John Michael Kosterliz.

Eles estudaram os estranhos estados da matéria em condições extremas. As descobertas dos cientistas têm grande impacto na tecnologia. Seus estudos influenciam perspectivas para isolantes, supercondutores e metais topológicos, além de possivelmente serem úteis no desenvolvimento de computadores quânticos.

AGENDA

7.out (Sexta)
Nobel da Paz

10.out (Segunda)
Prêmio de Ciências Econômicas


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