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Desmatamento e seca fazem índios do Xingu perderem 'tecnologia do fogo'

Lalo de Almeida/ Folhapress
CLIQUE PARA VER GALERIA: Entorno da aldeia Yawalapiti cercado pela fumaça das queimadas
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Enquanto esperava reforços para combater uma linha de fogo de 12 km de extensão que ameaçava a aldeia Yawalapiti, o brigadista Emilton Paixão foi abordado por um morador. Em meio à fumaça que encobria o Xingu, ele perguntou ao funcionário recém-chegado de Brasília se havia riscos em queimar a área da sua roça.

A recente insegurança dos índios para usar uma tecnologia dominada há incontáveis gerações para o plantio de subsistência é o sintoma mais visível das mudanças climáticas na região do Xingu, provocadas pelo aumento da temperatura global e pelo intenso desmatamento no entorno, tomado por pastagens e pela soja.

"Temos relatos de vários povos indígenas de que utilizam a mesma técnica tradicional do fogo, mas o resultado agora é muito diferente", afirma o pesquisador Paulo Brando, do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) e do Woods Hole (EUA). "O fogo que antes não escapava agora adentra a floresta e pode queimar áreas gigantescas."

Este ano tem sido especialmente devastador. Somente no mês de agosto, foram registrados 3.891 focos de incêndio, mais do que todo o ano anterior (2.728). Em resposta, o Ibama decretou situação de emergência e mobilizou 161 servidores e brigadistas, além de enviar um helicóptero.

O trabalho é exaustivo. Para debelar as chamas, os brigadistas, incluindo 25 índios xinguanos, usavam borrifadores de água atados às costas e "vassouras de bruxa", para abafar o fogo.

Apesar do esforço, cerca de 8% da área total do parque já foi queimada neste ano, o equivalente a 1.316 parques Ibirapuera. Caso o fogo continue se espalhando neste mês, previsto para ser o mais seco do ano, o Xingu corre o risco de superar a marca histórica de 2010, quando 10% da vegetação foi consumido pelo fogo, segundo cálculo do ISA (Instituto Socioambiental).

TEORIA E PRÁTICA

Estudos do Ipam mostram que já há uma mudança climática na região. O entorno do Xingu é monitorado de perto pelo instituto desde 2004, quando passou a fazer queimas experimentais na fazenda Tanguro, pertencente à família do ex-governador de MT e ministro da Agricultura, Blairo Maggi (PP).

Além do impacto do acúmulo de gases do efeito estufa, fenômeno global, o desmatamento nos limites do parque tem provocado um aumento da temperatura local e alterações no regime hidrológico.

A transformação da floresta em soja faz a temperatura de superfície aumentar 5°C, de acordo com o Ipam. Além disso, sem as árvores, há uma redução na evapotranspiração –a perda de água da planta para a atmosfera–, reduzindo o volume de chuva.

Lalo de Almeida/ Folhapress
CLIQUE PARA VER GALERIA: Amanhecer na aldeia Yawalapiti, com fumaça dos incêndios ao fundo
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Com isso, o período anual de estiagem aumentou, em média, três semanas na região, segundo o Ipam. Para agravar, houve registros de seca em sete dos últimos dez anos. "É quase um El Niño por ano", diz Brando.

O pesquisador, que coordena o estudo na Tanguro, trabalha com a hipótese de que as secas seguidas impedem a reposição da água no subsolo, reduzindo a capacidade da floresta de se manter verde.

Todas essas alterações vêm provocando apreensão entre os índios do Xingu. "Há uma série de confusões de interpretação em relação aos sinais que os índios tinham e que marcavam o período de várias atividades voltadas ao plantio", afirma André Villas-Bôas, secretário executivo do ISA.

Em entrevistas para o minidocumentário "Para Onde Foram as Andorinhas", lançado no ano passado, os xinguanos falam do do sol mais quente, do recente desaparecimento de animais que anunciavam as chuvas, como o pássaro do título e as cigarras, e da mudança no comportamento do fogo.

Focos de incêndio no Parque Indígena do Xingu

"Nós queimávamos a roça, e o fogo não se alastrava. Agora, está ficando seco debaixo da floresta. Quando queimamos a roça, o fogo se alastra", diz um dos depoentes.

A seca também tem levado à quebra da produção de alimentos tradicionais, principalmente mandioca. Na cerimônia do Quarup realizada em agosto na aldeia Yawalapiti, foi necessário comprar polvilho na cidade para fazer o biju (tapioca), base da alimentação, ao lado do peixe.

"O Xingu está cada vez mais seco. Cada ano, vai mudando o tempo, o clima. Aí, a cultura também vai mudando", afirma o coordenador regional da Funai Kumaré Txicão, 39, nascido e criado dentro do parque.

Txicão diz que algumas regiões do Xingu têm conseguido controlar melhor o fogo e que uma aldeia já iniciou um projeto de irrigação para o plantio de mandioca, por meio de mangueiras. "Eles estão buscando outras formas."

Vídeo: Bolsa Família altera rotina de indígenas no Xingu


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