Folha de S. Paulo


Humanos conversam com pássaros para coletar mel na África

Um pequeno pássaro africano aprendeu a se comunicar com seres humanos quando estes demonstram estar interessados em coletar mel. É um raríssimo caso desse tipo de interação entre um animal selvagem e o homem, descrito em artigo recente na revista científica "Science".

A pequena ave tem dois lados distintos, lembrando o clássico romance gótico do século 19 "O médico e o monstro", do autor escocês Robert Louis Stevenson.

Um deles é doce, literalmente: o pássaro-do-mel (Indicator indicator) costuma guiar seres humanos até colmeias de abelhas. Mas ele também age como um cuco, que põe seus ovos nos ninhos de outras aves para serem criados por elas. O filhotes do pássaro-do-mel matam seus rivais "adotivos" assim que nascem.

"Venho estudando o lado mais sombrio da vida dos pássaros-do-mel, o seu brutal comportamento reprodutivo parasitário, por muitos anos na Zâmbia. E sempre quis estudar as interações dos pássaros-do-mel com seres humanos, desde que ouvi o ecologista queniano Hussein Isack dando uma palestra sobre sua pesquisa sobre isso, quando eu tinha 11 anos", disse a principal autora, Claire Spottiswoode, à Folha.

Claire é pesquisadora da Universidade de Cambridge, Reino Unido, e da Universitdade de Cape Town (Cidade do Cabo) em Rondebosch, África do Sul. "Mas onde eu trabalho na Zâmbia eles não costumam orientar os humanos", diz.

Até que ela soube, através de um casal de pesquisadores, Keith e Colleen Begg, que trabalham na Reserva Nacional do Niassa, norte de Moçambique, que ali as interações entre os pássaros-do-mel e seres humanos são uma ocorrência diária. A reserva, diz ela, é uma "notável região selvagem, onde os seres humanos e os animais selvagens ainda coexistem e, neste caso, ainda cooperam".

Ambos ganham com a interação. Homens coletam mel, e usam fumaça para espantar as abelhas; as aves comem a cera, e não correm risco de picadas dolorosas.

Habitantes da reserva, os coletores de mel da tribo Yao chamam os pássaros para buscarem colmeias gritando algo como "brrr-hum".Os pássaros geralmente entendem e iniciam o ritual de voar de árvore em árvore atrás das colmeias. O chamado levou os humanos até o doce objetivo em em 75% dos casos. "O 'brrr-hum' mais do que triplicou as chances de uma interação bem-sucedida", diz Claire.

A paixão das aves pela cera de abelha é algo conhecido faz tempo. João dos Santos, um missionário português em Sofala, Moçambique, notou em 1588 que volta e meia pequenos pássaros marrons vinham mordiscar a cera de suas velas. Ele foi o primeiro a observar e relatar por escrito que os mesmos pássaros também guiavam os nativos em busca de colmeias de abelhas.

E como evoluiu essa interação com os seres humanos? "Essa é uma questão difícil de responder", diz a pesquisadora. O pássaro-do-mel existe há pelo menos três milhões de anos, bem mais do que os seres humanos modernos. Logo, durante muito tempo esses pássaros tiveram que se contentar em comer insetos e cera que conseguissem arranjar em colmeias abandonadas.

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DOCE COLABORAÇÃO

Por mel, humanos 'falam' com pássaros

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Animais domesticados, como o cão, ajudam humanos na busca de comida em caçadas. Mas são raríssimos os casos de animais selvagens e humanos que cooperam com benefícios mútuos, o chamado 'mutualismo'

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O pássaro-do-mel africano (Indicator indicator) é conhecido por guiar seres humanos até colmeias. Os homens se livram das abelhas com fumaça, coletam o mel, e deixam a cera para atrás –que serve de alimento para as aves

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Uma pesquisa em Moçambique mostrou que a cooperação vai um passo além. Os coletores de mel da tribo Yao conseguem chamar os pássaros para buscar colmeias usando um som específico, algo como "brrr-hum"

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Ao ouvir o pedido dos 'amigos' humanos, os pássaros voam de árvore em árvore em busca de colmeias. Sozinhos, os pássaros são incapazes de lidar com as abelhas, ou quebrar a colmeia para comer a cera

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Os coletores de mel da tribo dizem ter aprendido o grito de chamada com os pais. A equipe testou o som comparando com dois outros e seguiu os coletores. O chamado 'brrr-hum' levou os humanos em 75% dos casos até uma ou mais colmeias


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