Folha de S. Paulo


Arqueólogos revelam 'Game of Tribos' entre índios do Sul no ano 1000 d.C.

Divulgação
Complexo proto-jê em Campo Belo do Sul (SC)
Complexo proto-jê em Campo Belo do Sul (SC)

Estamos na divisa entre o Rio Grande do Sul e Santa Catarina, por volta do ano 1000 d.C. A região Sul do futuro Brasil está sendo conquistada pelos guerreiros antropófagos tupis-guaranis.

Todo o sul do Brasil? Não –chefes habilidosos, ancestrais de grupos como os atuais caingangues, aproveitam a ameaça para consolidar seu poder, unificar tribos antes dispersas sob sua égide e construir monumentos no alto das colinas, mostrando aos invasores sua disposição de resistir até o fim.

Descontado algum exagero épico, é mais ou menos esse é o retrato revelado pelos arqueólogos que estão escavando o interior da região Sul (em especial as áreas de planalto) nos últimos anos. Os dados podem enterrar de vez a ideia de que os habitantes do planalto nessa época, os chamados proto-jês, formavam grupos pequenos e igualitários, com estilo de vida rudimentar e pouco impacto sobre a paisagem.

PROTO-JÊS DO SUL

"A ameaça externa faz com que certas estruturas políticas mais complexas emerjam", resume Jonas Gregorio de Souza, pesquisador brasileiro que é doutorando do Departamento de Arqueologia da Universidade de Exeter (Reino Unido). Junto com colegas como Rafael Corteletti, da Universidade Federal do Paraná, e Mark Robinson, também de Exeter, Souza publicou algumas das conclusões da equipe sobre o tema em artigo recente na revista científica "Journal of Anthropological Archaeology".

MONUMENTOS NO MAPA

Um dos pontos centrais da pesquisa foi o mapeamento detalhado dos locais e das datações dos monumentos da cultura proto-jê, ao qual pertenciam os ancestrais de indígenas como os caingangues e xoclengues modernos ("jê" é o termo usado para designar o grande grupo linguístico ao qual os idiomas dessas tribos atuais pertencem).

Essa análise especial revelou alguns padrões significativos (veja infográfico). Primeiro, a construção de monumentos ganha força por volta do ano 1000 d.C., época que coincide com o aparecimento de artefatos associados à cultura tupi-guarani no território tradicional dos proto-jês. Ao mesmo tempo, as estruturas monumentais –como grandes muros circulares de terra e morros artificiais– concentram-se nas áreas onde os artefatos das duas culturas rivais não são encontrados juntos, mas onde há apenas cerâmica típica proto-jê.

Acontece que os dados obtidos por etnólogos a partir do século 19, quando as tribos da região já estavam em declínio, mas ainda eram relativamente numerosas, mostram que esse tipo de monumento era dedicado exclusivamente ao enterro das famílias dos chefes, que obtinham seu poder de forma hereditária –coisa relativamente rara entre os indígenas brasileiros. Eles mobilizavam o trabalho de membros de diversas aldeias para a construção dos monumentos e as cerimônias funerárias, além de dominar áreas relativamente extensas –quatro ou cinco grandes chefes dividiam entre si todo o planalto do Rio Grande do Sul, por exemplo.

"O papel central desses chefes, especialmente entre os caingangues, é a liderança na guerra", diz Souza. Por tudo isso, faz sentido que a gênese dos monumentos tenha acontecido justamente quando a chegada dos tupis-guaranis - que já tinham se expandido pelo litoral brasileiro e pelos principais rios da bacia do Paraná – colocava em risco o território tradicional proto-jê.

Nas vizinhanças dos monumentos, os pesquisadores têm encontrado tanto fornos de pedra quanto cerâmicas com resíduos de milho. O cereal, quando fermentado, servia para produzir as bebidas alcoólicas nativas, o que indica a realização de grandes festas funerárias no entorno das colinas sagradas.

O interior dos círculos artificiais não abrigava nenhuma estrutura além do sepultamento, que podia ser acompanhado por um pratinho e uma espécie de copo - provavelmente oferendas para o morto ilustre. Ao celebrar seus próprios ancestrais por esses meios, os chefes proto-jês provavelmente eram capazes de justificar seu direito ao poder político por meios religiosos.

Uma questão importante que ainda está em aberto é como os tupis-guaranis conseguiram avançar tanto nos territórios da regiões Sul, Sudeste e Nordeste, em especial no litoral. Os dados linguísticos e arqueológicos deixam claro que o lar original desses povos é a Amazônia, provavelmente no entorno de Rondônia. Alguns pesquisadores atribuem essa expansão à ideologia guerreira e antropófaga (na qual o principal objetivo era derrotar e devorar os inimigos), mas outras tribos do Brasil pré-cabralino também valorizavam as proezas bélicas.


Endereço da página: