Folha de S. Paulo


ONG recolhe remédios excedentes e os distribui a pacientes carentes no Egito

Quando Waleed Shawky encontrou um grande depósito de medicamentos doados, em uma mesquita do Cairo em 2010, ele ficou espantado. Sabendo o quanto era difícil para seus clientes de baixa renda pagar pelos medicamentos de que precisam, o farmacêutico há muito queria saber onde iam parar os medicamentos não usados ou vendidos.

Ele diz que o desperdício causado pela medicina comercial no Egito equivale a cerca de um bilhão de libras egípcias ao ano (US$ 112 milhões). "Perguntei para onde iriam aqueles remédios e o pessoal da mesquita respondeu que um farmacêutico talvez fosse lá apanhá-los, e talvez não", recordou Shawky, acomodado em sua modesta farmácia.

Logo depois, ele criou a Medicine for All, uma ONG que recolhe medicamentos excedentes e os distribui a pacientes necessitados. Primeiro, ele formou uma parceria com estudantes de farmácia para abrir farmácias assistenciais e atender aos funcionários das universidades. Depois ele expandiu seu programa, e beneficiou 60 mil egípcios por meio dele no ano passado.

A medicação representa o maior custo no sistema de saúde egípcio, e está fora do alcance de número significativo dos quase 90 milhões de habitantes do Egito. De acordo com o Banco Mundial, embora mais de metade dos egípcios tenha acesso a alguma forma de seguro-saúde, 72% dos custos de tratamento continuam a ser pagos diretamente pelos pacientes. Já que um quarto da população do país vive baixo da linha da pobreza, e 17% têm dificuldades até para comprar comida, muita gente vive sem remédios.

A Medicine for All trabalha por redistribuição, ligando medicamentos excedentes –não usados ou parcialmente usados– a pacientes que deles necessitam. A maioria das doações vem de farmácias e companhias farmacêuticas, porque elas não podem vender remédios com data de expiração inferior a três ou seis meses, mesmo que o remédio continue válido.

As doações também vêm de pessoas físicas que, por lei, devem comprar pacotes inteiros de remédios mesmo que só precisem de quantidades menores. Em alguns casos, as pessoas mudam de remédio ou morrem antes de consumir o estoque que têm. Pacientes abastados podem doar medicamentos usados, por altruísmo ou porque essas doações podem ser descontadas do imposto de renda e contam como doações à igreja ou mesquita do doador.

A ideia de Shawky lhe valeu reconhecimento. Ele foi um dos finalistas do Fórum Árabe do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) e foi apontado como bolsista da Ashoka.org, em 2013.

Na sede da Medicine for All, em Nasr City, um bairro do leste do Cairo, uma grande doação de uma empresa farmacêutica está depositada em seis grandes sacolas plásticas, à espera de separação. Shawky treina estudantes voluntários de farmácia para separar e selecionar os medicamentos doados, o que lhes confere experiência inestimável no trabalho com medicamentos reais.

A equipe dele descarta os medicamentos expirados ou deteriorados, cataloga os demais no banco de dados e depois os distribui por meio da ONGs parceiras, que selecionam os recipientes com base em suas necessidades médicas e meios econômicos, e fazem acompanhamento para garantir que os pacientes usem os remédios da forma receitada. A cada mês, caravanas médicas também entregam remédios para pacientes em áreas remotas. No ano passado, a Medicine for All distribuiu 1,6 milhão de libras egípcias em remédios doados, ante as 300 mil libras egípcias distribuídas em 2013, quando a organização foi criada oficialmente.

Em Zeitoun, um bairro no leste do Cairo, a Al-Nour Al-Mohamedy, distribui remédios a cerca de 30 pacientes por mês. "Não consigo comprar nem meia pílula", disse Saber Mostafa Mohamed, 64, encanador aposentado. Mohamed recebe aposentadoria de 360 libras egípcias por mês, mas seus remédios lhe custariam quase o dobro disso.

Antes mesmo que tivesse de parar de trabalhar por causa de seu problema cardíaco, Mohamed enfrentava o dilema de escolher entre sustentar sua família e comprar seus remédios. "Eu deixava meu destino nas mãos de Deus", ele disse.

Com cerca de 100 mil libras egípcias em despesas anuais, a Medicine for All por enquanto está se bancando sozinha, em parte com a bolsa que Shawky recebe da Ashoka.org. Ele espera ampliar a escala de suas operações, e está em busca de novas verbas e de novas parcerias.

Ele lançou um programa de patrocínio para pacientes cronicamente doentes, portadores de males como a hepatite C e a esquistossomose, endêmicos no Egito e que requerem medicamentos caros. Em Zeitoun, a zeladora Bakry Ahmed, 54, exibia seus mais recentes resultados de exames, que mostravam que ela havia extirpado o vírus da hepatite C graças a remédios doados pela Medicine for All.

Desperdício de remédios e o alto custo dos medicamentos são problema para diversos países do mundo, e resultaram em dificuldades semelhantes em outros lugares. Nos Estados Unidos, a organização Sirium usa um sistema online para redistribuição de medicamentos entre usuários.

"Onde existir o problema de uso indevido de remédios, o projeto pode funcionar", disse Shawky. "Sei que pode ser replicado no Oriente Médio e na região do Golfo Pérsico. Meus amigos nessas regiões me dizem ter o mesmo problema que o Egito".

Para além dos benefícios médicos e de desenvolvimento, a Medicine for All trouxe mudanças de mentalidade, encorajando até as pessoas mais necessitadas a compartilhar. "A organização me ensinou como viver", disse o encanador Mohamed. "Se me sobram remédios, eu os devolvo a Helmy".

Tradução de PAULO MIGLIACCI

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