Folha de S. Paulo


Cientistas acham genes de 'monocelha', cabelo branco e barba

As primeiras pistas sobre como o DNA influencia a presença de cabelos brancos, a densidade da barba e até a chamada "monocelha" (quando não há separação entre sobrancelhas) foram achadas por um consórcio internacional de cientistas que estudou o material genético de mais de 6.000 latino-americanos, entre os quais centenas de brasileiros.

No longo prazo, os dados talvez inspirem tratamentos estéticos de alta tecnologia ou ajudem os criminologistas a criar "retratos falados genéticos". Por enquanto, vão ajudar os biólogos a entender um pouco melhor a relação complexa entre herança genética e características humanas, e têm um interesse especial por virem de uma população no qual se misturam há séculos os genes de indígenas, europeus e africanos.

Debaixo dos Caracóis

"É preciso deixar claro que a gente não pode ser determinista, nenhuma dessas mutações vai corresponder de forma exata a uma característica em 100% dos casos", diz Tábita Hünemeier, professora do Instituto de Biociências da USP e coautora do estudo, que saiu recentemente no periódico especializado "Nature Communications". "Há muito interesse forense [de peritos criminais] em fazer retratos moleculares, mas ainda é um desafio bastante complicado."

Coordenada pelo colombiano Andrés Ruiz-Linares, que é pesquisador do University College de Londres, a pesquisa analisou o DNA de homens e mulheres (a maioria na casa dos 20 anos) do México, do Peru, do Chile, da Colômbia e do Brasil (no caso brasileiro, os voluntários foram recrutados no Rio Grande do Sul, na Bahia e em Rondônia).

Não bastava, porém, obter uma amostra de sangue que pudesse servir de fonte para o material genético. Cada pessoa era recebida pelos pesquisadores durante uns 40 minutos, conta Tábita – os voluntários respondiam um questionário sobre suas origens familiares e eram fotografados. Foi isso que permitiu, em primeiro lugar, ter uma ideia geral sobre cores e tipos de cabelo, barba e sobrancelhas dos participantes (veja infográfico).

O passo seguinte foi verificar se havia associações estatísticas entre essas características visíveis e um amplo conjunto de variantes de DNA conhecidas como SNPs (pronuncia-se "snips"), que correspondem à troca de uma única "letra" química do genoma (o DNA tem 3 bilhões de pares dessas letras). No total, a equipe estudou quase 700 mil SNPs. Mesmo trocas ínfimas de uma letrinha, como essas, podem alterar a "receita" para a produção de moléculas do organismo presente no DNA – e, portanto, desencadear diferenças entre a aparência de uma pessoa e outra que não carrega o mesmo SNP.

"MONOCELHA"

Como mulheres frequentemente fazem alterações profundas no formato de suas sobrancelhas em casa ou no salão de beleza, os casos de "monocelha" foram computados apenas em homens. E, nesses voluntários, a equipe flagrou SNPs associados ao gene PAX3, cuja ligação com uma síndrome que afeta o formato do nariz e das sobrancelhas já era conhecido. Ao que parece, são variantes genéticas tipicamente europeias.

Outro SNP, desta vez no gene IRF4, está associado tanto à presença de cabelos brancos quanto a cabelos e olhos de tons mais claros, sugerindo que as duas coisas surgem por mecanismos parcialmente comuns (a falta de pigmento, a "tinta" natural dos cabelos).

Finalmente, duas variações diferentes num gene já conhecido por sua associação com características capilares, o EDAR, parecem estar ligadas tanto aos cabelos lisos típicos de quem tem ascendência indígena quanto à barba mais fechada dos descendentes de europeus. "No primeiro caso, o ideal seria fazer a coleta do cabelo e a análise por microscopia para verificar o formato da fibra", explica a pesquisadora da USP.

Os pesquisadores devem continuar investindo nas possibilidades forenses dos dados – outros dos autores da pesquisa, Caio César Silva de Cerqueira, tornou-se recentemente perito da Polícia Civil de São Paulo, por exemplo. Mas outros integrantes do grupo, como a própria Tábita e Maria Cátira Bortolini, professora da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), são especialistas em contar a história das populações das Américas a partir dos genes, e a associação entre aparência física e DNA deve trazer novas dimensões a essa empreitada.

Segundo Tábita, possíveis trabalhos futuros poderão abordar a relação entre genes, aparência e dados socioeconômicos; investigar se a percepção que as pessoas têm da própria origem étnica tem boa correlação com o DNA; e até a relação entre diferentes sobrenomes e as variantes genômicas, já que os pesquisadores tiveram o cuidado de anotar não só o sobrenome dos voluntários como também o de seus pais e avós.


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