Folha de S. Paulo


Além de sangue, inseto da doença de Chagas pode também comer frutinha

Gutemberg Brito/IOC-Fiocruz
Barbeiro Rhodnius prolixus pode se alimentar de frutas. Pesquisadores usam tomate em experimento
Barbeiro Rhodnius prolixus pode se alimentar de frutas. Pesquisadores usam tomate em experimento

Um matuto falou para o outro que viu um barbeiro (inseto que transmite a doença de Chagas) chupando uma goiaba. O outro deu risada e disse que o calor deveria ter afetado a visão do amigo –o inseto é conhecido por somente se alimentar de sangue.

A curiosa história ganhou uma versão acadêmica em 2016, após o pesquisador Fernando Genta, do Laboratório de Bioquímica e Fisiologia de Insetos do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), ter dado "uma chance" para o mito.

Contra um paradigma científico de mais de um século, ele estava disposto a testar a hipótese de que o barbeiro pode sim se alimentar de frutas em busca de açúcar –e que essa dieta poderia ser benéfica para o bicho.

Na pesquisa, Genta e seus colaboradores não usaram goiabas (o que teria sido sensacional), mas tomates. No caso, a escolha se deu pela facilidade de encontrar versões sem pesticida do fruto.

Foi difícil chegar até lá e fazer com que os editores gringos de revistas acadêmicas acreditassem nos testes, mas agora está demonstrado que o que o matuto falou pode ter algum sentido.

O barbeiro escolhido foi o Rhodnius prolixus, que é bastante utilizado em investigações a respeito da transmissão da doença de Chagas. Outro bastante comum é o Triatoma infestans.

O experimento dos pesquisadores da Fiocruz começou quando eles separaram três grupos de jovens barbeiros, com vinte indivíduos cada um. A ideia era ver qual viveria mais. Os quase simpáticos insetinhos ainda estavam em estágio de ninfa, antes de atingirem a maturação completa.

O primeiro grupo era o dos barbeiros-controles, sem qualquer privilégio. O segundo dispunha de um tomate-cereja (2 cm de comprimento) pendurado na caixa (intocável para os jovens insetos). Finalmente, o terceiro grupo poderia, se quisesse, se deliciar com o fruto vermelho.

A explicação para um grupo com o tomate tão perto porém inalcançável é que a umidade da caixa poderia ser alterada pelo fruto, impedindo, por exemplo, a desidratação dos barbeiros.

TOMATE NO BUCHO

Os bichos que tiveram contato direto com o tomate de fato se alimentaram dele –DNA do fruto foi encontrado no estômago dos insetos– e, provavelmente por conta disso, viveram em média 16,5% (cerca de 5 dias) mais tempo que o grupo controle. A umidade trazida pelo tomate pendurado também teve um fator positivo na sobrevivência (9,2% mais tempo).

Mesmo com esses resultados, ainda estava difícil convencer algumas revistas internacionais de que a pesquisa era séria. Nadar contra a corrente na ciência não é uma tarefa fácil. Mais de um século de tradição estava no caminho de Genta e companhia.

Uma outra prova foi exigida, a de que o inseto teria a capacidade de ser alimentado artificialmente de açúcar. Usando um algodão, aos bichinhos foi oferecida uma solução de sacarose (o açúcar de cana) misturada com o corante azul de bromofenol.

Resultado obtido: barbeiros azuis e aceitação do trabalho na revista especializada "Parasites and Vectors", após algumas outras tentativas.

HEMATOFAGIA

Os barbeiros fazem parte da ordem dos hemípteros, assim com os percevejos. Muitos deles são fitófagos, ou seja, se alimentam de plantas, o que muito provavelmente também era o caso do ancestral evolutivo dos barbeiros.

Para que os barbeiros conseguissem sugar e aproveitar de sangue, um alimento complexo e até agressivo, a evolução teve que trabalhar criando enzimas específicas para obter nutrientes do fluido vital e alterando o aparelho bucal dos insetos para que penetrasse a pele com mais facilidade.

Apesar de tantas mudanças, seria possível que os barbeiros ainda guardassem semelhanças com seus primos sugadores de seiva?

"A digestão de hematófagos guarda semelhanças, com o pH do estômago e a estrutura das enzimas digestivas dos fitófagos", explica Genta. "Mostramos que o barbeiro ainda guardou algo desse background fitofágico, ou seja, ele não perdeu completamente essa capacidade."

O barbeiro chupador de goiaba (ou de tomate) não estaria servindo-se de seu alimento favorito, apenas de um quebra-galho. "De qualquer forma, se ele tiver acesso a essa fonte de açúcar, melhor para ele", explica Genta.

A vida no campo é difícil. Às vezes, os bichos ficam muito tempo sem sugar sangue de uma vítima. Nesse contexto, uma "salada de frutas" entre as refeições pode significar a diferença entre a vida e a morte. É uma dica que nosso matuto também poderia dar.

BARBEIRO

CHAGAS

A doença de Chagas é transmitida pelo barbeiro. O parasita Trypanosoma cruzi sai junto às fezes do inseto e, quando o local da picada é coçado, o protozoário acaba sendo arrastado para dentro da corrente sanguínea da vítima.

Estima-se que 100 milhões de pessoas estejam na área risco, que inclui boa parte do Brasil e América Latina. Dez mil adquirem a parasitose todo ano.

A doença é considerada negligenciada, já que não recebe grandes investimentos de pesquisa e prevenção, especialmente de países desenvolvidos. Nos EUA, por exemplo, há barbeiros, mas não transmissão da doença.

Uma vez no organismo, o protozoário pode se alojar no coração, causando um aumento patológico do órgão. O T. cruzi também pode causar alterações neurológicas e intestinais.

Existem drogas que podem curar uma infecção recente ou controlar e reduzir os efeitos da doença crônica, mas um dos problemas é a difícil detecção da doença, já que em metade dos casos não há sintomas.

Quando aparecem, esses sinais e sintomas podem ser um inchaço arroxeado na pálpebra, dor de cabeça, palidez, dor muscular, dificuldade ao respirar, inchaço e dor abdominal ou no peito.

Há alguns milênios, o T. cruzi afetava somente animais, antes de chegar aos humanos. Os bichos funcionam como reservatório de parasitas, dificultando sua eliminação.


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