Folha de S. Paulo


Estudo traça mapa da chegada do Homo sapiens à América

Pesquisadores da Austrália, dos EUA e da América Latina conseguiram obter e decodificar o DNA de mais de 90 indígenas que viveram antes da conquista europeia das Américas, entre 9.000 e 500 anos atrás.

Os dados ajudam a traçar um novo mapa da chegada do Homo sapiens ao continente americano, um épico que, segundo os cálculos da equipe, começou há 16 mil anos.

A conclusão vem da comparação do DNA antigo com o dos índios modernos, a partir da qual o grupo liderado por Bastien Llamas, da Universidade de Adelaide (Austrália), traçou uma super-árvore genealógica dos primeiros habitantes da América.

Uma das constatações mais claras do levantamento, aliás, é que essa árvore sofreu uma poda assustadora no passado recente: nenhum dos subtipos de DNA encontrados pelos cientistas nos indígenas que morreram antes do contato com os colonizadores possui um equivalente exato nas tribos de hoje.

O resultado corrobora a tese de que a chegada das caravelas ao litoral americano deflagrou o extermínio de até 90% da população nativa original (o grosso da mortandade provavelmente foi causado por doenças infecciosas do Velho Mundo, embora guerras, expedições escravistas e tratamento desumano também tenham contribuído).

A pesquisa está na revista especializada "Science Advances". Por enquanto, os cientistas não conseguiram "ler" todo o genoma dos antigos indígenas. Concentraram-se na análise do mtDNA (DNA mitocondrial), presente apenas nas mitocôndrias, usinas de energia das células que são transmitidas pelo lado materno.

Trata-se de uma ferramenta útil para decifrar a história populacional de uma região, embora esteja longe de contar toda ela -além de não levar em consideração o lado paterno, a análise do
mtDNA não inclui a maior parte do material genético, que fica no núcleo das células.

"Neste momento, estamos justamente gerando e analisando dados de DNA do núcleo de algumas das amostras antigas deste estudo recém-publicado, bem como de algumas outras, em colaboração com as equipes de Lars Fehren-Schmitz, da Universidade da Califórnia em Santa Cruz, e David Reich, da Escola Médica de Harvard. Esperamos publicar esses resultados no futuro próximo", disse Llamas à Folha.

GENOMA PRÉ-COLOMBO - Entenda pistas genéticas?sobre os primeiros americanos

TIQUE-TAQUE

Apesar das limitações, o estudo é importante pela grande quantidade de dados genéticos antigos e com datas bem estabelecidas, o que ajudou a estimar com mais precisão as datas de origem e diversificação dos ancestrais das tribos indígenas.

Isso foi possível porque, em grande medida, o DNA sofre alterações aleatórias (mutações) seguindo uma espécie de tique-taque constante. Suponha que, em média, uma "letra" de DNA seja trocada a cada mil anos; se os geneticistas identificam três dessas trocas numa linhagem, isso significaria que ela teria divergido (ou seja, se separado) da linhagem ancestral há 3.000 anos, digamos.

Foi com base num raciocínio parecido com esse (e pesadas análises estatísticas) que os cientistas estimaram que os ancestrais dos indígenas se separaram dos habitantes da Sibéria, sua provável região de origem, por volta de 25 mil anos atrás -justamente o momento mais frio da Era do Gelo.

Isso provavelmente não significa, no entanto, que a jornada América adentro começou nessa época.

A análise das variantes de mtDNA indica que houve um pico repentino de diversificação genética a partir de 16 mil anos antes do presente, o que faria sentido se a população dos primeiros americanos começasse a crescer de repente nessa época. Isso levou os cientistas a postular que, no pico da Era do Gelo, os ancestrais dos indígenas ficaram isolados na chamada Beríngia, língua de terra firme que, nessa época, unia a Sibéria
ao Alasca, nos atuais EUA.

Isso faz sentido quando se considera que, nesses milênios, geleiras tremendas barravam a passagem de quem quer que tentasse sair da Beríngia rumo ao continente americano. No entanto, justamente em torno dos "mágicos" 16 mil anos atrás, as geleiras na costa do Pacífico americano recuaram, o que provavelmente permitiu um avanço rápido pelo litoral.

Isso explicaria o crescimento populacional. Coincidência ou não, o sítio arqueológico mais antigo das Américas é o de Monte Verde, no Chile, localizado na costa
do Pacífico, com 13 mil anos.

A maior parte das amostras analisados vieram dos Andes. "É provável que a preservação do DNA seja relativamente ruim em regiões tropicais, embora precisemos testar isso mais detalhadamente. Eu certamente gostaria de examinar amostras de outras regiões das Américas, inclusive do Brasil", diz Llamas.


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