Folha de S. Paulo


'Rei da libélula', mineiro descreveu 97 espécies e coleciona 35 mil bichos

É um inseto com quatro asas, bota ovos dentro d'água, tem visão extremamente apurada, abdome alongado e aparelho bucal mastigador. Pode ser chamado de lavadeira, lava-bunda, jacinta ou pito, entre outros nomes.

Há mais de 800 espécies de libélulas no Brasil, e cerca de 10% delas foram descobertas por um pesquisador: o mineiro Angelo Machado, 81.

Ele é médico, professor universitário, pesquisador, escritor e dramaturgo. Mas gosta mesmo de ser zoólogo.

A paixão são as libélulas, e 97 delas foram descritas por ele, tanto no Brasil quanto em outros países.

É dono de uma coleção com 35 mil espécimes do animal, a segunda maior da América Latina, diz ele, atrás apenas do acervo do Museu Nacional, no Rio de Janeiro. No ano passado, doou tudo para a UFMG, mas ainda é o responsável por mantê-la.

Há 55 espécies nomeadas em sua homenagem, de libélulas (a maior parte), a aranhas, rãs e fungos. "Tem até um pernilongo que leva meu nome [o Culex machadoi]. Como vou matar um mosquito com o mesmo nome que eu? Isso não se faz", diz.

Tudo começou na adolescência. "Um dia peguei cinco libélulas na fazenda, e uma tia me disse para procurar um amigo dela, o grande pesquisador Newton Santos, e ele me contaria os nomes", diz.

Chegando lá, a decepção: o cientista disse que não revelaria os nomes dos insetos, mas indicou onde o então adolescente Angelo poderia descobri-los, e pediu que voltasse para ver se tinha acertado. "Errei umas, acertei outras, mas a paixão por pesquisar nunca me abandonou."

E foi longe para encontrar libélulas inéditas: fez sete viagens longas à floresta amazônica. "Tinha um amigo na FAB (Força Aérea) que arrumava carona para a Amazônia nos aviões. Subi de canoa o rio Tapajós, fui ao interior de Rondônia, Roraima, Amapá, conheci os índios Tirió, Macuxi, Wai Wai. Tudo para procurar bicho", diz ele.

Para encontrá-los, procura água, onde esse insetos põem ovos. Quando as libélulas aparecem, ele as captura com uma rede, depois as guarda em envelopes ou vidros com cianeto e leva para seu laboratório, onde vai analisar se são mesmo uma nova espécie.

Sua coleção tem desde as pequenas Agriocnenis, com 20 mm, até as grandes Mecistogaster, com 145 mm, cuja velocidade de voo pode chegar aos 80 km/h, diz ele.

Este último gênero vive nas matas brasileiras e se alimenta de presas capturadas por aranhas. São as únicas libélulas que voam em marcha-ré, diz Machado, para não se embrenharem pelas teias.

As libélulas se alimentam sobretudo de mosquitos, controlando pragas e ajudando até no combate ao Aedes aegypti, que transmite os vírus da dengue e da zika. As ninfas podem demorar de poucos meses até três anos para se desenvolverem, e na fase adulta o inseto costuma viver de quatro a seis meses, de acordo com a espécie.

De formação, na verdade, Angelo é médico. "Para a saúde dos doentes, nunca tratei ninguém. E foi não tratando que salvei vidas", brinca. Foi professor no curso de medicina da UFMG entre 1958 e 1986, enquanto mantinha o estudo dos insetos como hobby. Só se tornou entomólogo profissional quando passou a dar aulas no departamento de zoologia da universidade.

Deixou as salas de aula em 2005, quando se tornou professor emérito da universidade. "Eu levava meus alunos para o mato, mas nessa idade não dá mais", diz.

Hoje, trabalha de forma quase exclusiva na busca de novas espécies, aumentando de forma considerável a lista desde os anos 2000.

"Minha função principal é a ciência pura. A taxonomia [classificação de espécies] exige experiência para distinguir o que é mesmo novo, então aproveito que já tô velho e tô sabendo um pouco mais", diz o membro da Academia Brasileira de Ciências.

LITERATURA

Depois de se tornar professor de zoologia, começou a escrever e não parou desde então. A maior produção foi na literatura infantil. Já publicou 37 livros para crianças e tem outros dois programados para este ano, sempre com a temática ambiental e com foco em divulgar ciência.

Com o livro "O Velho da Montanha: uma Aventura Amazônica", de 1992, que ganhou um prêmio Jabuti, o mais importante da área, na categoria infanto-juvenil. Escreveu ainda outros três livros para adultos e nove peças.

Ele tem outros escritores de renome na família, como a tia Lúcia Machado de Almeida, cuja principal obra, aliás, teve participação de Angelo. Quando era estudante de medicina, a tia, sabendo de sua predileção por insetos, pediu que indicasse um animal "com um nome capaz de matar uma pessoa". A sugestão deu origem ao livro "O Escaravelho do Diabo".

Com toda essa experiência, preserva boa saúde, diz. Há dois anos foi internado com uma pneumonia. No hospital, teve um infarto. "Aproveitei que já estava lá para ter uma parada cardíaca, era mais prático, se não eu teria que voltar depois", brinca. Apesar do susto, logo se recuperou e hoje não tem sequelas.


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