Folha de S. Paulo


Escavações revelam hábitos de índios que viveram há mil anos no Sul do país

Quinhentos anos antes de os portugueses desembarcarem no Brasil, grupos no Sul do país plantavam o próprio alimento, usavam sementes de araucária para fazer pão e recorriam a técnicas de engenharia para construir casas.

Para fugir do frio, eles escavavam as moradias na terra, não sem observarem a inclinação do solo para deixar escorrer a água da chuva. Também fabricavam vasos de cerâmica para cozinhar e estocar alimentos. E, longe de casa, cremavam seus mortos.

Algumas aldeias eram populosas, como pequenas cidades, e podiam abrigar até 500 pessoas.

PROTO-JÊS DO SUL

Os hábitos complexos e a influência no meio ambiente dos chamados proto-jês, os indígenas que habitaram o "pré-Brasil" entre 50 a.C. e os anos 1.000, são objeto de um estudo de universidades do Brasil e do Reino Unido.

Desde 2014, pesquisadores do projeto "Paisagens Jê do Sul do Brasil" têm feito escavações em quatro cidades de Santa Catarina –na serra, no litoral e em uma área de mata atlântica.

Nos sítios arqueológicos, foram encontradas milhares de peças, entre elas 14 conjuntos de ossadas de corpos que foram cremados, lascas de cerâmica de vasos e panelas de diversos tamanhos e objetos de pedra lascada ou polida que serviam como machado e pontas de lança.

Além da USP, a coordenação do projeto envolve as universidades britânicas Exeter e Reading, com participação da Teeside e das brasileiras UFPR, UFRGS, Unisul e Furb, todas da região Sul. O estudo está sendo financiado pelos dois países.

INFLUÊNCIA MÚTUA

A araucária, árvore símbolo da paisagem do Sul do país, desempenhou papel-chave na fixação dos proto-jês no interior. O pinhão, semente ainda presente na culinária da região, era um alimento vital, triturado para fazer pão ou cozido no fogo. A semente ainda atraía roedores, e estes, mamíferos, que eram caçados pelos índios.

Os proto-jês também podem ter sido fundamentais para as araucárias: os pesquisadores concluíram que a floresta se expandiu significativamente em apenas um século, entre os anos 900 e 1.000.

Segundo o pesquisador Rafael Corteletti, uma das hipóteses é que os jês, ao abrirem clareiras na mata e criarem aldeias, ajudaram a acelerar a germinação das sementes.

Outro aspecto que mostra a complexidade dos proto-jês e enfraquece a ideia de que fossem índios nômades, como se acreditou no passado, é a prática da agricultura.

Vestígios em cerâmicas analisados em laboratório apontaram que os índios plantavam milho, mandioca, feijão, abóbora e inhame. Sopas de feijão com mandioca faziam parte do cardápio e havia até cerveja de milho usada em rituais religiosos, mostraram as escavações na Argentina.

A arte rupestre também é analisada. Em Urubici, cavernas guardam máscaras antropomórficas esculpidas na pedra, com traços sem paralelo em outros locais do Brasil.

COMPLEXIDADE

"Avôs" dos índios caigangues e xoclenques, etnias ainda presentes na região Sul, os proto-jês não conheciam o metal nem ergueram grandes construções como os incas, maias e astecas, que viveram na América pré-colombiana.

Ao mapear o estilo de vida dos proto-jês, porém, o projeto também pretende desmistificar a ideia de que índios brasileiros formavam grupos sociais simples, segundo o arqueólogo da USP Paulo DeBlasis, um dos coordenadores do projeto.

"Eles não ficam a dever a povos de outras regiões. Os incas têm uma sofisticação arquitetônica, mas os jês também são sofisticados à sua maneira, e com uma organização social bastante complexa", afirma DeBlasis.


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