Folha de S. Paulo


'Martelo de carne' levou ancestral humano a obter cérebro grande

Há milhões de anos, quando um ancestral humano resolveu bater e cortar carne com as ferramentas que tinha à mão antes de ingeri-la, mal sabia ele que esse seria um passo importante para que seus descendentes obtivessem um cérebro maior e traços mais modernos, como boca e dentes menores.

Uma série de experimentos que procuraram imitar a dieta do Homo erectus acaba de reforçar a hipótese de que o processamento de alimentos, combinado a uma alimentação carnívora, foi essencial para o desenvolvimento dessas características, antes mesmo do surgimento do cozimento da comida.

O estudo foi conduzido por Daniel Lieberman e Katherine Zink, da Universidade Harvard (EUA), e está publicado na última edição da revista científica britânica "Nature".

GRAÇAS AO MARTELO DE CARNE

O objetivo era resolver um paradoxo. O Homo erectus, que surgiu na África e viveu há dois milhões de anos, tinha o corpo e o cérebro maiores que ancestrais humanos anteriores, mas sua dentição era mais delicada, incluindo músculos menores para a mastigação, e seu aparelho digestivo era menor.

Um corpo maior demanda mais energia, que tem que vir obrigatoriamente de alimentos. Para comparação, primatas como gorilas e chimpanzés passam boa parte do dia procurando comida e mastigando. E quando se trata de carne, a alimentação é demorada, já que a dentição é mais apropriada para vegetais.

Então, já que os dentes pequenos e os músculos mastigatórios mais fracos do Homo erectus não ajudam, fatiar, amaciar e triturar comida com instrumentos poderiam dar conta do problema.

COMIDA COZIDA?

Existe uma hipótese alternativa: o cozimento dos alimentos, tanto carne como vegetais, é que produziu o excedente de energia que permitiu corpos e cérebros maiores. Ela foi promovida pelo pesquisador britânico, Richard Wrangham, também de Harvard, que argumenta que o Homo erectus já era um "masterchef".

"Wrangham, que é um primatologista de Harvard –seu escritório está a poucos metros do meu–, argumenta que o Homo erectus deve ter cozido carne, mas na verdade não há dados arqueológicos para apoiar isto. A mais antiga evidência de fogo é de um milhão de anos atrás, e a mais antiga evidência de cozimento regular é inferior há 500 mil anos", afirma Lieberman.

"Em termos de consumo de carne, nós temos dados arqueológicos abundantes sobre o seu uso regular começando há 2,5 milhões de anos. Podemos ver isso nos dentes, nos ossos de animais com marcas de corte, e em ferramentas de pedra que têm traços de terem sio usadas para cortar carne", diz. "É claro que não sabemos o quanto de carne o Homo erectus mais antigo comia, mas caçadores-coletores hoje têm cerca de 30% de sua dieta em carne", acrescenta Lieberman.

Os experimentos para tentar fazer uma "reconstituição pré-histórica" envolveram voluntários usando eletrodos na mandíbula e tendo que comer carne de bode, cenoura, beterraba e batata doce. Cru ou cozido. Fatiados, amaciados, assados.

Os resultados apontam que o Homo erectus mais antigo teria mastigado 17% menos e usado 26% menos força nos músculos da face ao processar os alimentos.

Comer carne e vegetais crus não é algo que muitos fariam. Mas, segundo a outra autora do estudo, Zink, "os voluntários do experimento parece que gostaram de 'mastigar pela ciência'. Não eram muitos os que já tinham comido carne crua antes, e, da minha experiência pessoal, posso dizer que bode cru tem um sabor muito distinto, mas é perfeitamente comestível".

"Curiosamente, de todos os alimentos que nós demos a eles, a beterraba parecia o menos apreciado. Eu nunca tinha percebido como as beterrabas são polarizadoras. Algumas pessoas amam, outras acham que ela tem um gosto muito ruim!", diz Zink.

"Nossos dados sugerem que o simples processamento de alimentos desempenhou um papel importante na evolução humana muito antes de que o cozimento fosse inventado e tornou-se comum", conclui Liberman.


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