Folha de S. Paulo


Em testes, vírus da zika ataca neurônios humanos

Cultivar células responsáveis pelo desenvolvimento do cérebro junto com o vírus da zika parece ser uma receita para o desastre: boa parte dessas precursoras dos neurônios acaba sendo infectada e morrendo, o que pode explicar o elo entre o vírus e o surto de microcefalia.

Esses são os resultados de uma pesquisa brasileira que acaba de ser feita. "Mostramos que o vírus não apenas tem uma tendência a infectar células precursoras do sistema nervoso humano como é capaz de causar um efeito devastador nelas", diz a biomédica Patricia Garcez, da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e do Instituto D'Or de Pesquisa e Ensino.

O novo estudo, coordenado por Garcez e Stevens Rehen, tem como ponto de partida a criação em laboratório de estruturas que lembram vagamente os primórdios embrionários do cérebro.

É possível obter tais estruturas por meio de uma técnica de manipulação genética que "rejuvenesce" células humanas adultas (que podem ser retiradas da pele, por exemplo), fazendo com que elas voltem a um estado muito parecido com o dos componentes de um embrião com poucos dias de vida.

Depois disso, é possível fazer com que essas células precursoras assumam duas formas interessantes para quem estuda o desenvolvimento cerebral (veja infográfico).

MINICÉREBROS DESTROÇADOS

Uma delas é a de neuroesfera, um agregado de células com características neurais que flutuam num meio de cultura. A outra pode ser apelidada popularmente de minicérebro, embora o termo mais correto seja "organoide cerebral" –uma versão muito simplificada do que temos em um cérebro adulto, com diferentes tipos de células organizados em camadas.

SUICÍDIO CELULAR

A equipe brasileira decidiu submeter essas duas estruturas ao assédio do vírus. O resultado não poderia ter sido menos animador.

Um trabalho da década de 1970 já havia mostrado lesões no cérebro de camundongos que receberam injeções do vírus diretamente no órgão, mas a nova pesquisa é a primeira a mostrar o que acontece quando o zika invade células neurais humanas.

Usando amostras de origem africana de uma linhagem do zika originalmente cultivada nos anos 1940, os cientistas conseguiram infectar até 8% das células precursoras do sistema nervoso.

Quando tais células formaram neuroesferas, essas estruturas tinham um formato anormal. Após seis dias de cultivo, pouquíssimas sobreviveram. Sem contato com o zika, centenas permaneceram vivas. As esferas infectadas apresentavam sinais claros de episódios de apoptose, a forma mais conhecida de "suicídio" celular.

Algo parecido se deu no caso dos organoides: os infectados pelo vírus tinham cerca de metade do tamanho dos sadios. Não é difícil imaginar o impacto no cérebro de fetos humanos caso a mesma coisa esteja acontecendo quando a gestante tem o vírus.

"O que vimos pode ser compatível com uma infecção durante o auge da formação de neurônios no feto, que vai até o quarto mês de gestação", diz Patricia.

Apesar de ainda estar sendo avaliada para publicação pelos editores da revista especializada "PeerJ", a pesquisa já pode ser acessada gratuitamente na internet.

"Seguimos a orientação da Organização Mundial da Saúde sobre partilha de dados em caso de emergência de saúde pública", diz Rehen.

No mês passado, as principais associações médicas e científicas do mundo assinaram uma declaração conjunta se comprometendo a divulgar dados de estudos sobre o zika com a maior rapidez possível, como forma de acelerar o combate à epidemia.

O estudo ainda não convenceu a todos. Alysson Muotri, biólogo brasileiro que trabalha na Universidade da Califórnia em San Diego, afirma que o novo trabalho ainda é "bem imaturo", por dois motivos principais: não houve comparação entre os efeitos do vírus africano e o que está circulando no Brasil; e teria sido interessante comparar o efeito do zika com o de um vírus que normalmente não afetaria o sistema nervoso, como a da febre amarela. "Numa dose alta, qualquer vírus pode matar células precursoras neurais", argumenta, Moutri.

Segundo Garcez, a equipe quis trabalhar inicialmente com a forma africana do zika porque era a mais fácil de ser obtida. Os pesquisadores, no entanto, já estão em posse da variante brasileira e análises semelhantes estão sendo conduzidas.

Ela diz ainda que a comparação com outros vírus que não "gostam" do sistema nervoso também já foi feita na UFRJ, e a ação do zika parece, de fato, ser muito mais destrutiva.

Tudo isso leva a uma pergunta que ainda desafia os cientistas: por que casos de microcefalia ligados ao vírus não surgiram na África?

Para a pesquisadora, pode ser que a versão latino-americana do zika seja mais eficaz na hora de se espalhar (ou seja, um número maior de casos levaria a malformações mais frequentes). Outra hipótese é que a falta de notificações sobre o problema nos países africanos esteja mascarando o efeito do vírus.


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