Folha de S. Paulo


Cientistas deixam suas pesquisas e aumentam jornada para priorizar zika

Dentro de um edifício da USP, no cantinho de um laboratório, funciona uma pequena porém eficiente fábrica de vírus da zika, que alimenta todos os grupos de pesquisa do país que passaram a se dedicar ao estudo do patógeno.

O trabalho de produzir o vírus foi assumido pelo grupo do virologista Edison Durigon, professor titular da universidade. A veterinária e mestranda Stella Melo, que antes se dedicava a pesquisar o RSV (vírus sincicial respiratório, que acomete crianças), de repente virou uma espécie de gerente de produção do vírus da zika na USP, graças às suas habilidades em cultivar células em laboratório.

O trabalho tirou até o Natal e o recesso de fim de ano da equipe -a produção não podia parar, já que muita gente dependia do material para tocar outras pesquisas que incluem novos testes diagnósticos e uma possível vacina.

A equipe da USP, porém, não é a única que entrou na força-tarefa. Grupos de diversas universidades com experiência em epidemiologia (ciência que estuda a origem, espalhamento e efeitos de doenças), virologia (que estuda vírus) ou entomologia (ramo da biologia que lida com os insetos, entre eles o Aedes aegypti ), estão deixando suas pesquisas originais de lado para incluir e priorizar o tema zika nos estudos.

Hoje um filão, o vírus da zika nunca foi muito estudado no Brasil ou no mundo. Mesmo após as primeiras detecções da doença no país, em 2014, não houve grande interesse dos cientistas -a doença passava quase despercebida no meio de dengue e chikungunya. Tudo mudou, contudo, após a microcefalia entrar na história e sua relação com o vírus da zika ganhar contornos de causalidade.

Em novembro, com a intensificação dessa relação zika-microcefalia, pesquisadores de São Paulo se mobilizaram para recriar e rebatizar a antiga rede de grupos de pesquisa em virologia do Estado, agora chamada de Rede Zika. "A gente ficava sabendo do que acontecia pela imprensa", diz Durigon.

NOVAS ATRIBUIÇÕES

A rede reúne cientistas de São Paulo que pensam nos próximos passos da pesquisa e compartilham achados e informações como técnicas de cultivo de vírus.

Em outros Estados também há articulação de redes de pesquisa para estudar a zika. No Rio de Janeiro, ela está sendo capitaneada pela Fiocruz. Também há várias colaborações nacionais. Uma delas foi liderada pela Sociedade Brasileira de Genética Médica, que uniu cientistas do Sul, Sudeste e Nordeste do país e produziu um estudo recente que afirmava que 71% dos casos de microcefalia são graves.

A esperança é que todas essas contribuições gerem resultados impactantes tanto na comunidade científica quanto na vida cotidiana. Os vírus cultivados na USP entram em ação em projetos que visam detectar em minutos a zika no sangue e em investigações de como o patógeno produziria a microcefalia e outras más-formações.

Há ainda uma iniciativa de vacina baseada em vírus inativado voltada às mulheres grávidas. A bióloga e mestranda Sara Pereira, da USP, hoje concentra seus esforços em criar um modelo animal que servirá para testar a eficácia da nova vacina. Até então, seu objetivo era criar um modelo para mimetizar infecções pelo vírus da dengue. Assim como Stella Melo, ela agora tem de lidar com as duas pesquisas.

A veterinária e pós-doutoranda Danielle Araújo está na mesma ciranda. Seu foco era a infecção pelo vírus da raiva, mas agora ela mira em um método barato e automatizado de diagnosticar a zika.

Doenças transmitidas pelo Aedes aegypti

GARGALOS

Mas, ao deixar de lado seus projetos iniciais para se concentrar na zika, os pesquisadores ganham cobranças em dobro. Isso porque eles ainda precisam apresentar relatórios e prestações de contas dos projetos interrompidos às agências de fomento.

O trabalho duplo pode, inclusive, ser um gargalo na pesquisa da zika, avalia Durigon, já que mais cedo ou mais tarde os cientistas podem voltar aos estudos originais.

Outro problema levantado pelo virologista é que faltam pesquisadores novos interessados em abraçar o tema zika desde o início e permanecer pelo menos seis anos –do mestrado ao doutorado– nessa mesma linha, gerando herança para as próximas gerações acadêmicas.

Para o diretor-científico da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), Carlos Henrique de Brito Cruz, o importante é que exista "massa crítica" –ou seja, cientistas que já atuavam em áreas relacionadas- para coordenar pesquisas e receber financiamento. "São pessoas cujas formações são resultados de investimentos de décadas atrás."

Editoria de Arte/Folhapress

MAIS DINHEIRO

Por ano, a Fapesp libera em torno de R$ 7 milhões para estudos relacionados às arboviroses (viroses transmitidas por artrópodes, como o aedes), mas a expectativa é que o montante cresça neste ano e os projetos ligados à zika possam ser aprovados (ou rejeitados) mais rapidamente.

Órgãos internacionais como os NIH (Institutos Nacionais de Saúde dos EUA) e o britânico Medical Research Council também estão apoiando as pesquisas. Este último já disponibilizou £ 1 milhão (R$ 5,5 milhões).

"Nenhum laboratório estava financeiramente preparado para o que aconteceu", diz Jayme de Souza Neto, professor da Unesp em Botucatu. Em seu grupo, sete pesquisadores colocaram suas teses em espera para se dedicar à zika.

A Fapesp também quer apoiar empresas de tecnologia para o desenvolvimento de métodos que impeçam, por exemplo, que as larvas do mosquito cheguem à fase adulta. As estratégias podem incluir produtos que atrapalhem a "mecânica" de sobrevivência das larvas, fazendo com que elas se afoguem ao alterar a tensão superficial.


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