Folha de S. Paulo


Lagarto brasileiro vira um animal de sangue quente para o acasalamento

Um lagarto típico do Brasil é capaz de transcender a fama de "animal de sangue frio" típica dos répteis. No começo da primavera, quando os teiús (Salvator merianae) emergem de suas tocas após uma soneca prolongada, o organismo deles consegue ficar bem mais quente do que o ambiente que os circunda, tal como fazem os mamíferos.

Os cientistas que descobriram esse fenômeno surpreendente suspeitam que a expectativa de arrumar namorada(o) é que está literalmente aquecendo o coração dos teiús nas manhãs primaveris.

A súbita transformação dos bichos em "animais de sangue quente" coincide com a época do acasalamento, período no qual eles gastam bem mais energia do que o normal, o que exigiria um metabolismo mais rápido, com elevada geração de calor.

Brasileiros e canadenses que participaram do estudo, publicado na revista especializada "Science Advances", tropeçaram por acaso na façanha metabólica dos lagartos, segundo um dos coordenadores da pesquisa, Cléo Costa Leite, da Universidade Federal de São Carlos.

"Os teiús são interessantes por causa da maneira como respondem à sazonalidade, entrando em torpor ou dormência durante quatro meses por ano, no inverno", diz Leite. Como se trata de um
bicho tropical, não é correto dizer "hibernação", mas é algo muito parecido.

Isso fez com que os teiús se tornassem um dos alvos da equipe do INCT (Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia) em Fisiologia Comparada, que uniu pesquisadores interessados em estudar as adaptações inusitadas de diversas espécies aos ambientes do Brasil.

A surpresa veio quando a equipe monitorou a temperatura, os batimentos cardíacos e a respiração dos bichos ao longo de um ano: quando a primavera chegava, perto do raiar do dia, o corpo dos teiús ficava, em média, 7 graus Celsius mais quente que a toca.

DENTRO OU FORA?

A questão, lembra Leite, é que os termos "sangue quente" e "sangue frio" são enganosos. Os cientistas preferem usar "endotérmicos" e "ectotérmicos" - "endo" e "ecto" são os equivalentes gregos de "dentro" e "fora", o que significa que a diferença, na verdade, é que alguns animais mantêm internamente sua temperatura, enquanto outros dependem de ajuda externa para se esquentar.

Ora, os teiús adotam mecanismos externos de aquecimento também. Como todo bom lagarto, gostam de um bom banho de luz solar, e costumam se embolar com outros indivíduos da espécie nas tocas, para conservar o calor.

A questão é que esses mecanismos não explicam o que estava sendo visto pelos pesquisadores. Quando os teiús foram colocados num recinto fechado, com temperatura e luminosidade controladas e sem acesso à luz solar, mesmo assim havia a manutenção do calor corpóreo dos bichos.

Os pesquisadores descobriram ainda que os batimentos cardíacos dos bichos ficavam mais acelerados, enquanto seu metabolismo tornava-se até três vezes mais rápido. Tudo isso está por trás da temperatura mais alta.

Lagarto sangue quente

VISÃO EVOLUTIVA

As observações podem ajudar a entender como animais endotérmicos surgiram, para começo de conversa. A hipótese é que o calorzinho extra está ligado ao período reprodutivo dos teiús -no qual os machos precisam enfrentar rivais pelo privilégio de cruzar com as fêmeas, ambos os sexos precisam produzir óvulos e espermatozoides etc.

Nesse caso, os ancestrais de mamíferos e aves também poderiam ter começado sua história "calorosa" com investimentos metabólicos na reprodução que geravam calor e, mais tarde, foram favorecidos pela seleção natural como mecanismo para manter os bichos aquecidos.

Seja como for, até agora a situação dos teiús é única entre os répteis. Algumas pítons (grandes serpentes), ao se enrolar em seus ovos para chocá-los, conseguem produzir calor tremendo seus músculos, mas não pela simples ação de seu metabolismo.

Também participaram da pesquisa cientistas da Unesp e de duas instituições canadenses, a Universidade Brock e a Universidade da Colúmbia Britânica.


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