Folha de S. Paulo


'Perereca dançarina' encanta cientistas com movimentos exuberantes

Perereca dançarina

Ela mexe a cabeça de um lado pro outro. Oito vezes. Quem passa por perto da perereca Hylodes japi no meio de sua performance precisa ser discreto para não atrapalhar o ritual de acasalamento. O bicho mora no que resta de mata atlântica na serra do Japi, em Jundiaí.

Os bichinhos de 2,5 cm de comprimento entram na categoria das rãs-de-corredeira e, ao contrário da maioria dos anuros (anfíbios sem cauda), têm vida diurna e enxergam muito bem.

serra do Japi

Isso permitiu que a espécie desenvolvesse, além do velho coaxo, um riquíssimo repertório visual para interagir com o mesmo sexo e com o sexo oposto –uma série de "passos dança" característico da espécie. Geralmente a forma de comunicação usada por anuros é a acústica –via coaxos.

Os movimentos são diversos. Os animais podem andar fazendo paradinha ou equilibrar-se nas patas dianteiras e exibir as traseiras em uma tentativa de mostrar, com o auxílio dos coaxos, quem manda naquele pedacinho de mata atlântica.

O coaxo da pererequinha também foi moldado pela evolução. Os machos alcançam notas bastante agudas, que se sobressaem no som de fundo provocado pelo rio (escute apertando o "play" abaixo). As fêmeas, por sua vez, são mudas.

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Um outro exemplo de gesto é o movimento de abaixar, erguer a cabeça e inflar os sacos vocais –que pode tanto ser uma cantada para a fêmea quanto uma demonstração de irritação com outros machos invadindo o território. Neste último caso, o comportamento é chamado de agonístico.

"Os machos são muito territoriais. Mesmo quando são atacados e fogem, cinco minutos depois eles já voltam para o mesmo local de antes", explica o biólogo Fábio de Sá, que pesquisa os animais desde 2011, tendo, inclusive, sido um dos responsáveis pela descrição da espécie, em 2015.

Outro achado do trabalho é a capacidade que esses anfíbios têm de inflar cada um dos dois sacos vocais (direito e esquerdo) separadamente. A vantagem, acreditam os cientistas, é poder emitir um sinal apenas em uma determinada direção –onde estaria uma outra perereca–, "evitando atrair um predador com aquele 'pisca-pisca' no pescoço", explica Célio Haddad, professor da Unesp e coautor do estudo.

Sinais de perereca

Os resultados da pesquisa, que pela primeira vez descreveu os profusos movimentos, foram publicados na revista científica "Plos One".
As pequenas e habilidosas comunicadoras não tem muita frescura na hora do almoço. Vale formiga, aranha, larvinhas"¦ basicamente qualquer coisa que se mexa.

Por outro lado, azar o delas, que podem ser devoradas de uma vez só por rãs e sapos maiores. Outras inimigas são as pequenas serpentes que vagueiam pelo solo. Nesse caso (e em quase qualquer outro), a água faz parte da rota padrão de fuga.

NA TELINHA

Para obter uma descrição precisa dos movimentos das pererecas, foi necessário adquirir uma boa câmera a fim de registrar os bichinhos em em vídeo.

"Eu tinha que ficar por um bom tempo parado, até mesmo camuflado, com folhas à minha frente, para que o animal não percebesse que eu estava ali", conta Sá.

Depois do trabalho em campo que incluía a captura de pererecas com as mãos nuas (sem luvas) –a melhor técnica, segundo Sá– ele precisava assistir às dezenas de horas de vídeo, muitas vezes em câmera lenta, para entender o que estava acontecendo. "Quase fiquei cego no processo", brinca.

Os biólogos, principalmente aqueles que trabalham com pássaros e anfíbios, também precisam carregar microfones e gravadores profissionais: os coaxos, além servir para de identificar espécies, podem ser modulados pelos bichos para "dizer" coisas diferentes.

Fábio de Sá e colaboradores
_Hylodes japi_, espécie de perereca que apresenta complexa comunicação visual
Hylodes japi, espécie de perereca que apresenta complexa comunicação visual

No caso da pesquisa com a Hylodes japi, foi observado uma sinergia (chamada comunicação multimodal) entre diferentes tipos de comportamento: o coaxo, o toque e a comunicação visual na hora do acasalamento.

Enquanto a fêmea repousa a cabeça no dorso do macho, ele sinaliza inflando o saco vocal do lado que ela está, estica as pernas e treme o corpo. Ergue uma pata, fazendo uma ondulação. Esse namoro chega a durar 40 minutos.

Depois disso, eles rumam para um momento íntimo debaixo d'água. Em uma toca são postos os ovos de onde sairão os pequenos girinos.

PRIMA PARECIDA

A pererequinha estava sempre lá, aguardando ser descoberta, mas era confundida com outra, parecida, uma "prima". A Hylodes japi tem a cara, o focinho e o jeito da Hylodes ornatus, cuja população está estabelecida a mais de 200 km dali, na serra da Mantiqueira entre Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo.

É algo que pode até passar despercebido aos olhos não treinados. E aos treinados também. Haddad havia deixado passar a chance alguns anos atrás. Ele explica que há muitas espécies crípticas, ou seja, que se assemelham à forma e ao jeitão de outra, mas que, na verdade, atendem os requisitos para a classificação como nova espécie, como isolamento geográfico e reprodutivo.

"A cor da japi era um pouquinho diferente, mas isso também pode acontecer dentro de uma mesma espécie", justifica Haddad.

No caso, além de ter o "insight" baseado na observação de que aquela espécie poderia ser, de fato, nova, foi necessário fazer um bocado de medidas, como análise acústica de seu coaxo além da avaliação comportamental e de um "código de barras" genético.


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