Folha de S. Paulo


Fóssil de mamute indica que homem chegou ao Ártico 10 mil anos antes do previsto

Divulgação/"Science"
Pesquisador Sergey Gorbunov escava o cadáver de mamute na Sibéria
Pesquisador Sergey Gorbunov escava o cadáver de mamute na Sibéria

Os restos mortais de um mamute que foi abatido a golpes de lança há 45 mil anos são o mais antigo indício da presença do homem no Ártico, segundo pesquisadores russos.

A análise sugere um avanço surpreendentemente precoce da nossa espécie rumo a uma das regiões mais inóspitas do globo - até agora, acreditava-se que o ser humano só teria alcançado a área uns dez mil anos mais tarde.

Mapa do mamute na Sibéria

Publicado na edição desta semana do periódico especializado "Science", o trabalho liderado por Vladimir Pitulko, do Instituto de História da Cultura Material da Academia Russa de Ciências, pode ser visto como uma espécie de "CSI: Mamute", tamanho é o detalhamento detetivesco que permitiu estimar como e quando o paquiderme peludo foi morto.

O dado mais importante é que as marcas no esqueleto do bicho –como um corte na quinta vértebra esquerda - só podem ser explicadas pela ação de caçadores humanos. "Nenhum processo natural, como pisoteamento ou mastigação de predadores, produz coisa parecida, e o mesmo padrão de danos aparece em outros sítios arqueológicos, o que não nos deixa nenhuma dúvida", declarou Pitulko à Folha.

RUMO AO POLO NORTE

A descoberta é impactante, em parte, porque mostra o ritmo avassalador com que os seres humanos de anatomia moderna estavam se espalhando pelo planeta naquela época.

Originários da África, os primeiros Homo sapiens começaram a deixar seu continente natal a partir de uns 60 mil anos atrás, chegando ao Oriente Médio e alcançando rapidamente a Índia e a Austrália, com climas que não diferiam radicalmente do africano. Por volta de 45 mil anos atrás, aventuraram-se na Europa –e também no norte da Sibéria, à beira do atual mar de Kara, onde foi encontrado o cadáver de mamute.

O animal era um macho de 15 anos de idade (elefantes e seus parentes têm mais ou menos o mesmo padrão de envelhecimento dos seres humanos, ou seja, tratava-se de um adolescente). O esqueleto estava "excepcionalmente completo", segundo os pesquisadores, que desenterraram ainda alguns tecidos moles do bicho, como restos do "cupim" (uma reserva de gordura, similar ao dos bois zebus de hoje) e do pênis. O material obtido da tíbia (osso da canela) foi datado por meio do método do carbono-14, um dos mais usados pelos arqueólogos, chegando-se à idade estimada de 45 mil anos.

Além de lesões nas costelas, o mamute foi atingido ainda no ombro esquerdo, de tal maneira que o agressor deveria estar atacando a uma altura de 1,5 m –ou seja, justamente no nível do ombro de um homem adulto. Com o bicho já caído, outro golpe, desta vez no crânio, provavelmente teve como objetivo atingir a base da tromba (veja infográfico). Trata-se de uma técnica ainda usada por tribos africanas - um corte profundo nessa região é capaz de dilacerar grandes artérias e fazer o animal sangrar até a morte.

Depois que o paquiderme expirou, os caçadores teriam quebrado sua mandíbula (provavelmente para extrair a língua e consumi-la) e retirado pedaços do marfim de suas presas para usá-lo como matéria-prima.

"Isso faz sentido porque, como dizem alguns de meus colegas, você pode aproveitar quase tudo quando abate um elefante", afirma o pesquisador russo. "É uma fonte de comida, mas também de combustível, como as fezes, a gordura e os ossos, além de fornecer matéria-prima para abrigos e ferramentas, o que era muito importante em ambientes abertos como a estepe do Ártico, onde quase não havia árvores."

Para Pitulko, embora não haja restos humanos ou ferramentas associadas ao cadáver de mamute, é praticamente certo que seus algozes tenham sido humanos anatomicamente modernos (Homo sapiens), e não neandertais, parentes da humanidade que ainda existiam na Europa nessa época. É que os neandertais não parecem ter se aventurado na área (seu território era a Europa Ocidental e o Oriente Médio), e a caça ao mamute era uma especialidade dos Homo sapiens.

Por incrível que pareça, embora a vida na região certamente fosse duríssima, caçar por lá não era uma má ideia. Há 45 mil anos, o planeta passava por uma trégua nos períodos glaciais. A temperatura no Ártico siberiano era, portanto, similar à atual ou até um ou dois graus Celsius mais quente (algo em torno de 10oC no auge do verão).

Com abundante vegetação rasteira, algumas árvores pequenas aqui e ali, rios e pântanos, a área estava repleta de grandes herbívoros - além dos mamutes, rinocerontes-lanosos e bisões circulavam por lá, o que deve ter despertado a gula dos caçadores humanos.

A longa adaptação a essa área do planeta pode ter servido de "treinamento" para a fase seguinte da expansão humana: a chegada às Américas, atravessando o gélido estreito de Bering entre a Sibéria e o Alasca.

Mamute sibéria

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