Folha de S. Paulo


TCU aponta irregularidades em obra de Miguel Nicolelis

09.jan.2014/Reprodução
O novo Campus do Cérebro, projeto encabeçado por Miguel Nicolelis e orçado em R$ 250 milhões, ainda em obras
O novo Campus do Cérebro, projeto encabeçado por Miguel Nicolelis e orçado em R$ 250 milhões, ainda em obras

Um relatório preliminar do TCU (Tribunal de Contas da União) aponta irregularidades no Campus do Cérebro, projeto idealizado pelo neurocientista Miguel Nicolelis, um dos mais famosos cientistas do Brasil. 

Orçado em quase R$ 250 milhões, o projeto inclui um centro de pesquisa em neurociência, uma escola, um centro de saúde e atividades de divulgação astronômica em Macaíba (RN). O governo federal já investiu R$ 57 milhões no Campus do Cérebro.

Para o TCU, um dos problemas é que não há uma definição clara do projeto.

A definição do que é exatamente o Campus do Cérebro não estaria explícita no contrato. Segundo o TCU, é possível encontrar vídeos na internet em que Nicolelis fala de detalhes que não estão indicados no projeto, como um pórtico de entrada "em forma de um 14-bis [o icônico avião de Santos Dumont] de tijolo e concreto".

O relatório ao qual a Folha teve acesso foi elaborado pela área técnica do TCU e aguarda apreciação da ministra Ana Arraes. Ele foi obtido via Lei de Acesso à Informação.

Outras questões levantadas pelo relatório do TCU são:

- Ausência de justificativa clara, por parte do Ministério da Educação, para escolher a organização de Nicolelis para gerir o projeto;

- O risco de eventuais patentes geradas (e de verbas excedentes) irem para o exterior;

- A falta de controle sobre os recursos geridos.

O documento do TCU fala em "irregularidades graves", diz ser admissível a anulação do contrato de gestão (que permite o repasse dos recursos) e aponta risco de perda patrimonial e de o projeto se tornar um "elefante branco".

ATRASO

Em visitas ao espaço, os auditores verificaram que as obras estão paradas e que parte delas já está tomada pelo mato ou foi depredada.

Previsto inicialmente para ser inaugurado em 2014, o Campus do Cérebro teve sua inauguração adiada para o segundo semestre deste ano.

À Folha, o Ministério da Educação e o Instituto Santos Dumont deram datas distintas para a inauguração.

Em nota, o MEC afirmou que a inauguração do projeto foi adiada para o segundo semestre de 2016. Já o instituto presido por Nicolelis, via assessoria de imprensa, afirmou que a inauguração se mantém no segundo semestre ainda deste ano.

Os auditores apontam ainda confusão jurídica entre a Aasdap (Associação Alberto Santos Dumont para Apoio à Pesquisa) e o ISD (Instituto de Ensino e Pesquisa Santos Dumont), ambos presididos por Nicolelis.

Daniel Marenco - 21.mai.2103/Folhapress
O neurocientista Miguel Nicolelis, responsável pelo projeto Campus do Cérebro
O neurocientista Miguel Nicolelis, responsável pelo projeto Campus do Cérebro

As duas entidades teriam contratos com o governo federal, mas não ficaria claro qual o papel de cada uma nem como se distribuem os recursos, o que faz com que seja difícil rastrear o caminho do dinheiro público repassado.

"Há um entrelaçamento organizacional, institucional e patrimonial entre elas. (...) As entidades parecem mesclar a administração e condução dos projetos, podendo haver o mesmo pessoal atuando em ambas as instituições", diz o relatório.

O relatório é obra dos auditores –ou seja, do corpo técnico do TCU, não dos ministros, que são livres para acatá-lo ou não. Em outros termos, trata-se de um parecer não vinculante.

No TCU, os ministros, a partir dos relatórios técnicos, analisam as contas de administradores e demais responsáveis por dinheiro público. Se eles considerarem que eventuais irregularidades realmente existem, podem aplicar as sanções previstas em lei, como multas.

Em dezembro do ano passado, a SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência) questionou publicamente o Ministério da Educação sobre a decisão de investir tantos recursos no projeto do Campus do Cérebro.

OUTRO LADO

Procurado pela Folha, o ISD (Instituto Santos Dumont), presidido por Miguel Nicolelis, apontou por meio de sua assessoria de imprensa que o escopo do projeto em Natal está bem definido.

"O Campus do Cérebro compreende o estabelecimento de um polo científico, tecnológico e educacional, por meio da implementação de um centro de pesquisas em neurociências e neuroengenharia e de uma escola de educação básica em horário integral, ambos localizados em uma área de 99,5 hectares, no município de Macaíba (RN)."

Segundo o Ministério da Educação, o ISD recebeu R$ 29,6 milhões em 2014.

Esse valor foi destinado à operação de três escolas de educação científica –uma delas no terreno em que funcionaria o Campus do Cérebro–, para o Centro de Educação e Pesquisa em Saúde Anita Garibaldi –este localizado dentro do terreno– e para o Instituto Internacional de Neurociências Edmond e Lili Safra.

O MEC diz que, em 2015, o ISD ainda não recebeu nenhum recurso da pasta, mas que o instituto encaminhou, em 2 de setembro, a proposta de um termo aditivo de R$ 20 milhões. "A nova proposta encontra-se em análise".  

O relatório do TCU também demonstra preocupação com a questão das patentes de produtos e tecnologias geradas no complexo. Embora tenha a maior parte de seu financiamento público, o contrato prevê que as patentes pertencerão apenas ao ISD.

Em nota, o ISD diz que a questão das patentes será "regida pela legislação em vigor e de acordo com as melhores práticas adotadas pelas instituições de ensino e pesquisa do país".

Segundo a entidade, todos os recursos assim provenientes seriam revertido em prol do instituto, que é uma organização sem fins lucrativos.

O relatório do TCU diz que há uma "insegurança jurídica ante a responsabilidade e limites de atuação da UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte)" e que poderia estender a interveniência da universidade ad eternum para além de suas atribuições.

Por meio de sua assessoria, a UFRN afirmou que só tem responsabilidade pelos prédios em construção.

O Tribunal de Contas da União, por meio de sua assessoria, afirmou que não poderia se manifestar, uma vez que o relatório ainda não é a versão final, aprovada pela relatora Ana Arraes.

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LINHA DO TEMPO

1995
Sidarta Ribeiro, Cláudio Mello e Sergio Neuenschwander começam o movimento para repatriar neurocientistas brasileiros no exterior e criar um polo de neurociência no Rio Grande do Norte

2003
Parceria da UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte) e Miguel Nicolelis para criar o Instituto Internacional de Neurociências de Natal

2004
Inserção da Finep e concessão, pela UFRN, do terreno em Macaíba (RN)

2006
Assinatura do contrato de gestão do projeto

2009
Licitação para a construção

Fevereiro de 2011
Nicolelis anuncia publicamente seus planos de expandir o IINN e criar o megaprojeto do Campus do Cérebro, com centro de pesquisa, escola e unidade de saúde

Fim de 2011
Professores da UFRN envolvidos no IINN abandonam o projeto para fundar seu próprio instituto de pesquisa. A justificativa é de que Nicolelis não permitia acesso a equipamentos de pesquisa

Julho de 2014
Novo contrato de gestão é firmado. MEC omite, no diário oficial, o valor do projeto do Campus do Cérebro: R$ 247 milhões

Dezembro 2014
SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência) questiona o MEC por investir tanto dinheiro no Campus do Cérebro

Maio de 2015
Relatório do TCU aponta irregularidades no projeto no RN


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