Folha de S. Paulo


Cientistas descrevem decapitação mais antiga das Américas, de 9.000 anos

Infográfico: Decapitação ancestral

Quem habitava o continente americano alguns séculos (ou milênios) atrás corria sério risco de perder a cabeça.

Coletar a cabeça do inimigo sempre foi um gesto intimidador, e isso não era raro nas Américas, mas em uma decapitação pode haver muito mais significado do que a simples intenção de amedrontar: poderia haver arte e até respeito, segundo um novo estudo.

O antropólogo e geólogo André Strauss, junto com o bioantropólogo da USP Walter Neves e outros onze colaboradores acabaram de publicar um artigo na revista científica "Plos One" em que descrevem a mais antiga decapitação já registrada na história do Novo Mundo, que teria ocorrido há mais de 9.000 anos na região da atual Matozinhos, cidade de Minas Gerais a 50 km da capital Belo Horizonte.

Os quadrinhos acima reproduzem ficcionalmente como a reportagem, com a ajuda de Strauss, imagina que possa ter se dado a história do indivíduo do sepultamento 26, apelidado de Bwii.

O que os arqueólogos acharam enterrado a mais ou menos meio metro de profundidade foi uma cabeça sem corpo e com as mãos dispostas "em oposição" uma à outra: a mão direita foi colocada sobre o lado esquerdo da face, com os dedos apontando para o queixo e a mão esquerda estava sobre o lado direito, apontando para a testa.

Danilo Bernardo
Crânio decapitado e mãos decepadas encontrados em Lapa do Santo, em Minas Gerais
Crânio decapitado e mãos decepadas encontrados no sítio arqueológico de Lapa do Santo (MG)

O "povo de Luzia" (em homenagem o fóssil de uma das mais antigas brasileiras já achadas, de 11.400 mil anos) é conhecido também por um certo aspecto artístico presente em sua cultura funerária.

Por exemplo, já foi encontrado um crânio cujo conteúdo foi preenchido com ossos que pertenciam a outra pessoa, além de túmulos de adultos com crânios de criança e vice-versa.

Uma das coisas mais surpreendentes da decapitação, segundo Strauss, é a precisão com que ela foi feita. "Arrancar uma cabeça com um machadão no estilo 'Game of Thrones' [série de TV ambientada num mundo fantástico/medieval] é fácil, mas no paleolítico, com ferramentas de pedra, era um trabalhão. Eles não tinham metal".

Na opinião dos autores, a visão eurocêntrica geralmente busca descrever decapitações como decorrência de ações violentas entre grupos. No caso da cabeça do sepultamento 26, porém, os cientistas apostaram em uma explicação mais pacífica para o ritual.

Uma das evidências é que o crânio não foi perfurado –nos furos passariam alças que indicariam que a cabeça poderia ser carregada de um lado para outro, como um prêmio.

Outra são as lesões pós-morte nos ossos, mostrando que "eles sabiam o que estavam fazendo", diz Strauss.

Por último, o cuidado com a simbologia das mãos, que provavelmente foram amarradas com algum tipo de corda e que dificilmente teriam sido colocadas naquela posição "por acaso".

Alberto Barioni
Escavação onde os arqueólogos fizeram encontraram os fósseis, na região deMatozinhos (MG)
Escavação onde os arqueólogos encontraram os fósseis, na região de Matozinhos (MG)

"Imagino que o morto do sepultamento 26 fazia parte da comunidade local, e provavelmente era respeitado, talvez até algum tipo de chefe", diz Strauss.

Depois de cortar as partes moles do pescoço com lascas, a cabeça era torcida até os tendões arrebentarem e, finalmente permitir a separação do corpo. "Eu mesmo fiz alguns experimentos com cabras e vi o quanto é difícil. Dá pra ouvir um estralo quando os tendões se rompem", conta o antropólogo.

Na opinião do pesquisador, o sítio arqueológico de Lapa do Santo, mesmo após tantos achados, ainda pode contar muito sobre a história humana no Brasil pré-histórico.

MAIS CABEÇAS

Outros povos pré-colombianos também tinham grande apreço por cabeças.

Há registros de antigos Incas que arrancavam a cabeça de desafortunados ainda vivos com violência. Elas participavam de rituais e eram depositadas próximo a pirâmides.

Outro exemplo seria um guerreiro morto por índios mudurukus, da Amazônia: ele teria sua cabeça cortada, esvaziada, mumificada, defumada, decorada e usada como adorno e amuleto para ajudar na caça e aumentar fertilidade


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