Folha de S. Paulo


Lobo com cara de filhote fofo se deu bem e evoluiu para cachorro

Muito lobo se deu mal no processo de virar cachorro.

Não fomos nós que tomamos a iniciativa de nos aproximarmos dos ancestrais dos cães. Eles nos procuraram.

O ponto é que pequenos agrupamentos primitivos humanos, em vários lugares do mundo por volta de 30 mil anos atrás, geravam bastante lixo –potencial comida para lobos das redondezas.

Mas, para o azar deles, as duas espécies se davam muito mal, conta o pesquisador Richard Francis, que publica agora nos EUA um livro sobre domesticação amplamente baseado em descobertas da genética e da arqueologia.

"Até porque competíamos pelas mesmas presas. Provavelmente sempre que humano e lobo se encontravam, um dos dois saía morto."

Os lobos menos avessos aos humanos –mais dóceis– foram se aproximando. Discretamente. Mostrar-se inofensivo era uma aposta. O lobo/cão bonzinho poderia ganhar mais restos de comida. Ou poderia virar churrasco.

Ao que tudo indica, comer cachorro foi atividade generalizada pela história. O cara com fome, o totó ali dando bobeira... Encontrar DNA canino em panelas de sítios arqueológicos é coisa banal.

Mas nossos abundantes restos eram de fato muito apetitosos, e eles tinham dois trunfos para virar o jogo.

ÚTIL E FOFO

A primeira razão para que um lobo-a-caminho-de-virar-cachorro escapasse à grelha era pragmática. Seu faro e sua audição tinham utilidade.

Em algum momento, percebeu-se que, vivos, os bichos eram úteis como sentinelas. Bastava que estivessem nas redondezas e se agitassem para que fosse dado o alerta.

Em um segundo momento, já de modo mais deliberado, o faro se mostrou útil para a caça. É razoável supor que foi aí que os cães começaram a acompanhar homens lado a lado. A aceitação, enfim –embora o hábito de comer o bicho de vez em quando nunca tenha acabado por completo.

O segundo trunfo dos cães, tão importante quanto o primeiro, é fruto da seleção artificial: eles foram se tornando cada vez mais fofinhos.

O mecanismo genético pelo qual isso aconteceu tem ficado cada vez mais claro.

O critério de seleção era simples. Cachorro dócil e sociável fica; cão arredio é tocado para longe. A prole do cão bonzinho carrega os genes desse comportamento. Se você sempre escolher os 10% mais amigáveis, em poucas gerações terá um bicho apaixonado lambendo seu rosto.

Mas não é só o comportamento que faz nós gostarmos de cães. Olhe para eles. Eles são muito bonitinhos, não?

A explicação passa pela gambiarra feita para acalmar o instinto assassino dos lobos ancestrais. Não houve mudanças genéticas complexas.

A natureza achou um jeito bem simples e engenhoso, na verdade.

Filhotes de lobo são muito menos agressivos do que os adultos. Se você busca lobos bonzinhos, uma solução evolutiva bastante trivial pode ser prolongar traços infantis pela idade adulta.

Mas muita coisa vêm nesse pacote além do comportamento: os cachorros passaram a ter mais cara de filhote –dos olhões ao tipo de focinho ou pelo.

Ou seja, talvez a madame que chame seu cãozinho de "meu bebê" não esteja assim tão errada. Há algo infantil nos cachorros que nos afeta. Comê-los foi ficando difícil.

A coisa mais curiosa, que fica nítida entre povos tribais da atualidade, é que há um sinal muito nítido de que um cachorro subiu de nível e não vai mais virar comida.

Ele ganha nome.

É como se, nas nossas mentes, não houvesse mal em se deliciar com um cachorro que vaga por aí –mas fazer isso com o Rex?!

GATOS

A pergunta inevitável: tudo isso vale para gatos?

Não muito. Seu contato com os humanos sempre foi menos íntimo. Sua domesticação se deu mais tarde, uns 10 mil anos atrás, quando começamos a armazenar grãos.

Com os grãos vieram os ratos, e com os ratos os gatos, que acabaram, em alguma medida, se aconchegando.

Mas gatos nunca se interessaram muito por restos dos humanos em si, pois são bem mais carnívoros que os cachorros. Cães comem qualquer coisa. Qualquer coisa. Veterinários que os dissecam acham de cabelo a cotonetes em seu sistema digestivo.

Gatos são caçadores. Pense nos seus parentes. "Morrer atacado por uma onça é muito melhor do que por cachorros selvagens, muito mais rápido", diz Francis. Cachorros nem sabem matar direito.

"Quando um cão ataca, parece que vai levar a vida inteira para matar. A presa leva centenas de mordidas, é comida ainda viva", diz o autor de "Domesticated", publicado nos EUA pela editora Norton.

Esse caráter mais selvagem da personalidade felina acabou se mostrando um tanto incontornável –mesmo gatos "de apartamento" gostam de dar suas escapadas. É um dos motivos pelos quais gatos não são cachorros.


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