Folha de S. Paulo


O dia em que o Sistema Solar acabou: leia relato de físico e jornalista que acompanhou de perto as missões

Neste texto, o veterano físico e jornalista americano Dennis Overbye, 71, faz uma reflexão sobre a chegada da sonda New Horizons a Plutão na última terça-feira. Trata-se de um marco na exploração do Sistema Solar. Passamos agora por todos os protagonistas do nosso quintal.

Overbye lembra que a busca agora segue especialmente pelos astros coadjuvantes, que, como nos grandes filmes, podem se relevar decisivos.

Veja Titã, lua de Saturno: "A descoberta de um micróbio por lá seria o maior evento científico desta era", afirma.

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Criança, antes de querer jogar beisebol pelo New York Yankees, eu queria ser caubói.

Minha ideia era montar um cavalo pelos morros do Oeste pelos quais sempre passávamos nas viagens de carro e ver o que havia do outro lado.

Ver o que havia do outro lado –eu imaginava que após cada morro haveria um novo morro, com novos mistérios.

Infográfico: Primeiras aproximações - Credito: Filipe Rocha e Pilker/Editoria de Arte/Folhapress

Não sou o único a pensar assim. Humanos buscam novos territórios desde que se aventuraram fora da África.

Pode-se imaginar várias evolutivas para o desejo de bater perna: incentivar a diversidade, encontrar novos recursos, reduzir o efeito de secas ou pragas –ou talvez até o sonho de se reinventar num lugar onde ninguém sabia que você era um canalha.

Durante a maior parte da minha vida, os morros que nos atraíram foram os outros mundos. Nossos cavalos são robôs com nomes como Mariner, Viking, Voyager.
Após uma viagem de nove anos e meio, no último dia 14 de julho chegamos ao último grande morro: Plutão.

O estoque de planetas maiores –Plutão entre eles ou não– acabou. A fase de fugir do berço e olhar ao redor terminou. Nas palavras de Alan Stern, chefe da missão, foi "a última sessão de cinema".

DEPOIS DO FIM

É verdade que, além dos morros, sempre existem novos morros –e além dos mundos existem mais mundos.

Então a New Horizons irá prosseguir, se tudo der certo, passando por um ou mais dos icebergs cósmicos do cinturão de Kuiper, onde sobras da aurora do sistema solar foram preservadas em baixíssima temperatura, muito na periferia do Sistema Solar.

Se tudo der certo, sondas como a Dawn, agora orbitando o planeta-anão Ceres, e a Rosetta, orbitando o cometa 67P/Churyumov-Gerasimenko, seguirão para o elenco de coadjuvantes do sistema solar que, como em muitos filmes bem bolados, podem se revelar ótimos personagens.

É difícil escrever estas palavras. Como serão entendidas daqui 50 anos? Eu nunca sonhei, quando astronautas deixaram a Lua em 1972, que poderia chegar um dia em que ninguém vivo tivesse pisado no satélite natural. Pode acontecer. Não é de doer o coração?

É fato que ninguém sabe se um dia cruzaremos o mar negro e muito gelado entre nós e as estrelas, além do Sistema Solar, mas isso não quer dizer que não teremos mais descobertas maravilhosas ou fundamentais em nosso quintal.

Além das perguntas que o primeiro reconhecimento do Sistema Solar gerou, a Nasa agora pretende despachar uma sonda para Europa, a lua de Júpiter que tem um oceano salgado debaixo de uma camada de gelo, e talvez consiga enviar outra para os gêiseres que jorram em Encelado, a lua de Saturno, e investigar materiais orgânicos.

Minha ideia favorita é enviar um barco para navegar pelos mares e lagos de metano de Titã, a maior lua saturniana. A descoberta de um micróbio por lá seria o maior evento científico desta era.

MINHAS LEMBRANÇAS

Tirando a Lua, tudo começou quando a Mariner 2 passou por Vênus em 1962. Esperanças foram se desfazendo no caminho, começando com o sonho de vida em Marte. A Mariner 4 passou por lá três anos depois e enviou fotos de um mundo que parecia morto, salpicado de crateras.

Adeus aos sonhos de achar canais e antigas civilizações moribundas –ou apocalipticamente avançadas. Era hora de peneirar as areias vermelhas em busca de micróbios ou qualquer coisa orgânica.

Entrei nesse jogo quando, redator tardio da revista "Discover", montei na garupa de um par de cavalos chamados Voyager, em 1980, em suas duas primeiras passagens por Saturno. Eu não conseguia acreditar na minha sorte.

Na sala de imprensa da Nasa, nós víamos as imagens da Voyager vindas do espaço ao mesmo tempo em que os cientistas, a poucos metros.

Se alguém ou algo segurasse um cartaz dizendo "volte para casa, ianque" em alguma cratera distante, todos veríamos ao mesmo tempo.

Toda manhã, cientistas perplexos, não acostumados a fazer ciência instantânea em público, vinham confessar que não sabiam o que eram aquelas coisas. Todos nós estávamos vendo um território novo, coisas que ninguém havia visto, todos a um só tempo. Era como viajar no nariz da espaçonave.

Depois, a Voyager começava a ultrapassar Saturno, Urano e Netuno, mostrando como a organização do material universal pode ser diversa e imprevisível. Cada chegada a um planeta era uma surpresa.

A maior atenção cabia aos vulcões. Enxofre na lua jupiteriana de Io, lagos de hidrocarbonetos em Titã, fissuras no gelo fresco de Europa, raios escuros nos anéis de Saturno.

A ideia de alguma coisa, de qualquer coisa, até mesmo água, movendo-se tão longe da luz e do calor do Sol, me parecia um milagre.

E ainda parece.

Obrigado pela carona.


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