Folha de S. Paulo


Solução radical para salvar boto incomoda pescadores no Amazonas

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A pesca de uma espécie que ganhava cada vez mais espaço nos frigoríficos do Amazonas –a piracatinga, um bagre carniceiro– está proibida desde o início do ano. A medida visa proteger o boto, golfinho de água doce cuja carne vinha sendo usada como isca, mas afeta famílias ribeirinhas.

A moratória de cinco anos na comercialização de piracatinga foi uma decisão conjunta dos ministérios de Pesca e do Meio Ambiente.

Estudos do Inpa (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia), que acompanha botos na região de Mamirauá, apontam que a redução anual das populações chegava a 10% em algumas áreas. Assim, o animal poderia entrar em extinção rapidamente.

"Depois de nascer, o boto demora sete anos para entrar em maturidade sexual, só tem um filhote só por gestação, que dura onze meses; depois amamenta o filhote por dois anos e ainda cuida dele mais um", explica Vera Ferreira da Silva, pesquisadora do Inpa.

A necessidade de proibir a comercialização da piracatinga, afirma, é que o aumento na disponibilidade desse peixe estava diretamente ligada à caça ao boto para uso como isca. O uso do animal eximia os pescadores de comprar carne de boi para atrair o bagre.

Pescadores que dizem capturar a piracatinga sem usar carne de boto, porém, se sentem injustiçados.

"Trabalho há quase vinte anos com um açougue aqui, comprando banha de boi para pescar", diz Leonson Nóbrega, 60, da vila de Manacapuru, próxima a Manaus.

"Esse é o único peixe aqui que permite a um pobre viver, porque é um peixe de couro, dá o ano todo. O peixe de escama some em um período."

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A Folha visitou Manacapuru, onde não se vê mais botos com facilidade, mas nenhum pescador na região diz ter usado o animal como isca. "Essa matação de boto foi gente rica que fez, sabe Deus lá onde", diz Nóbrega.

O MPF (Ministério Público Federal) reconhece o problema. "A moratória da piracatinga vai causar prejuízo econômico, e não se pode descartar que alguns justos venham a pagar pela maioria pecadora", afirma o procurador Rafael da Silva Rocha.

Segundo ele, porém, é responsabilidade das autoridades locais ajudar pescadores a substituírem o piracatinga.

Matusalém de Oliveira, dono de frigorífico em Manacapuru, diz que vai perder 20% do faturamento. "Caçar boto é proibido. Quem é pego com boto é que tem de ser punido."

Segundo o MPF, porém, fiscalizar a miríade de pequenos barcos que abastecem os frigoríficos é inviável, e o uso do boto não era o único problema causado pela piracatinga.

Por ser necrófago, esse bagre, conhecido na região como "urubu d'água", é pouco procurado em mercados locais, e a produção é vendida com outros nomes, como douradinha ou pirosca. "É propaganda ilegal", diz Rocha.

Estudos com carne do animal vendida na Colômbia –principal mercado consumidor– encontraram muitas amostras com nível de mercúrio acima do aceitável.

Pesquisadores do ICMBio (Instituto Chico Mendes de Biodiversidade) sugerem que em regiões onde a pesca da piracatinga ocorria existe potencial para uma atividade menos nociva ""o turismo de observação de botos.

Segundo Marcelo Vidal, biólogo do ICMBio, o risco é que a alimentação artificial intoxique e faça os animais perderem instinto de caça. No rio Negro, porém, existe uma experiência positiva. Um antigo restaurante flutuante virou um ponto de observação –e não vende mais comida.

"Mas não podemos liberar um flutuante de interação com botos em cada rio da Amazônia", diz Vidal. "Dar uma alternativa para a piracatinga vai ser um desafio."

Fotografia DOUGLAS LAMBERT | Edição: BIA BITTENCOURT | Arte: EDUARDO ASTA


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