Folha de S. Paulo


Memória é tema de pesquisa de neuropsicóloga de 94 anos

Sob muitos aspectos, o plano recém-anunciado pelo governo Obama de mapear o cérebro humano tem origem no trabalho da neuropsicóloga Brenda Milner, que mostrou, com base em detalhadas observações de um paciente com amnésia na década de 1950, como a memória está atrelada a regiões específicas do cérebro.

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O paciente com amnésia, Henry Molaison (conhecido em vida apenas como H.M., para proteger sua privacidade), morreu em 2008, aos 82 anos, e está tendo seu cérebro dissecado e mapeado digitalmente.

Milner, 94, ainda passa dias inteiros estudando as diferenças entre os hemisférios cerebrais esquerdo e direito no Instituto e Hospital Neurológico de Montreal (conhecido como Neuro). Conversamos lá e na reunião anual da Associação Americana para o Avanço da Ciência, em Boston. Leia trechos das conversas:

Yannick Grandmont - 18.jan.2013/The New York Times
A neuropsicóloga Brenda Milner, 94, em Montreal, no início deste ano
A neuropsicóloga Brenda Milner, 94, em Montreal, no início deste ano

The New York Times - Como a sra. começou a trabalhar com H.M., talvez o mais famoso paciente da neurociência?
Brenda Milner - Em 1950, vim trabalhar aqui no Instituto Neurológico de Montreal para estudar os pacientes de Wilder Penfield. Ele havia criado o Neuro como um lugar para ser pioneiro no tratamento neurocirúrgico da epilepsia. Penfield havia desenvolvido um procedimento para pacientes que estavam tendo ataques epilépticos por causa de lesões cerebrais, no qual ele extirpava a parte lesada do cérebro.

Uma das coisas que eu fiz foi tentar ajudar Penfield a apontar de onde vinham os ataques. Era realmente um trabalho de detetive. Usei eletroencefalogramas e desenvolvi testes em parte baseados na pesquisa que eu estava fazendo.

Dois pacientes, P.B. e F.C., apresentaram algo que nunca havíamos visto. Depois da cirurgia, a capacidade deles de formar memórias de longo prazo havia desaparecido --embora a memória imediata e a inteligência continuassem intactas.

Penfield e eu desenvolvemos a hipótese de que havia dano em um lado do cérebro que nós poderíamos não ter visto e, quando ele extirpou o outro lado, ele privou esses pacientes da função da região. Então redigimos aquela teoria e a apresentamos em um sumário a uma reunião da Associação Neurológica Americana, em Chicago.

Isso a levou a conhecer H.M.?
William Scoville, um cirurgião em Hartford, telefonou-me e disse: "Estou vendo a mesma coisa em um paciente epilético em quem fiz uma operação". Scoville então me convidou para vir a Hartford estudar essa pessoa.

Como era H.M.?
Ele passou a ter ataques epilépticos depois de um acidente de bicicleta na infância. A cirurgia havia sido benéfica para isso. Mas a excisão lhe causava dificuldades em adquirir novas lembranças de longo prazo.

Havia coisas do passado das quais ele se lembrava, mas ele contava a mesma piada repetidamente.

Eu lhe dava um teste em que ele tinha de repetir um conjunto de números --cinco, oito e quatro. Ele conseguia fazer isso repetindo constantemente esses números para si ou montando fórmulas. Mas, se eu o distraísse --e a vida distrai constantemente--, ele não conseguia mais dizer a sequência.

Que tipo de teste a senhora fez com ele?
Um deles era um quebra-cabeça em que ele precisava encontrar a saída de um labirinto. Ele simplesmente não conseguia. Outro envolvia lhe dar uma estrela de cinco pontas e pedir que ele seguisse seus contornos olhando num espelho.

Parece fácil, mas não é. É realmente um teste de aprendizado da capacidade motora. Bom, H.M. conseguiu! À medida que H.M. tentava traçar a estrela --mais de 30 vezes em três dias-- ele mostrava uma linda curva de aprendizado. Ele não conseguia se lembrar de nenhuma das 30 tentativas, mas melhorava.

O que isso significou?
Que há diferentes tipos de aprendizado e que a memória autobiográfica, ou memória de longo prazo, não é a memória inteira.

A sra. tem 95 anos e ainda trabalha.
Tenho 94! E, sim, trabalho. Sempre me interessei em como os dois lados do cérebro funcionam. Agora, com as ressonâncias magnéticas funcionais, podemos ver muito mais.

Como está a sua memória?
Ah, está terrível. Você esquece coisas, como nomes. Mas, felizmente, descobri que há muita gente, não só pessoas da minha idade, que esquece nomes.


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