Folha de S. Paulo


'Não me incomodo com charlatanismo quântico', diz Nobel de física

Além do imponente bigode de caubói, a primeira coisa que se nota a respeito do físico americano David Wineland, 69, um dos dois ganhadores do Prêmio Nobel em Física do ano passado, é a extrema timidez. Modesto, faz questão de frisar que a láurea é o resultado de um esforço coletivo, envolvendo grande número de cientistas, embora só ele e o francês Serge Haroche tenham sido premiados pelo comitê do Nobel.

O pesquisador do Nist (Instituto Nacional de Padrões e Tecnologia, uma espécie de "Inmetro" americano) visitou o país junto com mais quatro ganhadores do Nobel durante um simpósio no Instituto de Física da USP de São Carlos - é colaborador antigo dos cientistas da instituição. Seu trabalho premiado envolve a manipulação individual de íons (átomos eletricamente carregados), tecnologia que poderá permitir, no futuro, o desenvolvimento dos chamados computadores quânticos, com capacidade para resolver problemas que hoje são osso duro de roer para os computadores tradicionais.

Em entrevista à Folha, Wineland disse que não se incomoda quando charlatães tentam transformar física quântica em autoajuda para vender livros. E revelou que ainda não sabe qual será a "mordida" do imposto de renda sobre o valor do prêmio (ele recebeu cerca de US$ 500 mil). Confira a conversa.

O sr. tem esperança de que seja possível unificar a física completamente esquisita do mundo quântico, que vale para os átomos e partículas, com a física que vemos funcionar no nosso mundo macroscópico?
Bem, é indiscutível o fato de que, no nível quântico, as coisas realmente funcionam desse jeito esquisito, no qual uma partícula pode estar em dois estados diferentes ao mesmo tempo, e assim por diante. E é claro que, do ponto de vista lógico, nós sentimos que é necessário alcançar algum nível mais profundo de compreensão no qual o abismo entre o mundo quântico e o clássico [o do cotidiano] não seja tão grande. Mas ainda é difícil dizer como seria o caminho para criar uma ponte entre os dois mundos.

Seria possível prever quando teremos um computador quântico plenamente funcional e mais potente que os computadores atuais?
Eu não me arriscaria a fazer essa previsão, embora os progressos tenham sido grandes. Imagino que, quando conseguirmos realizar operações lógicas com cerca de cem átomos, por exemplo, alcançaríamos um nível computacional bem acima do que conseguimos com os computadores atuais.

Mas é importante frisar que não haveria uma substituição - para a imensa maioria das tarefas, continuaria valendo a pena usar os computadores clássicos, e não os quânticos. A computação quântica seria especialmente útil para simular sistemas quânticos que não conseguíssemos observar experimentalmente, por exemplo.

Então nem adianta esperar que a loja da Apple venda um desses no futuro?
Pois é, acho que não (risos).

Quando livros e filmes se põem a usar a física quântica como pretexto para todo tipo de ideia maluca, como curas, telepatia e até autoajuda, o sr. fica irritado?
Sabe que não me importo muito? Quer dizer, ideias malucas e interpretações errôneas são comuns em todas as áreas da ciência, como no caso da teoria da evolução, por exemplo. Não acho que seria diferente no caso da mecânica quântica. É algo inevitável, em certo sentido.

Como o sr. descreveria sua relação com os físicos do Brasil?
Sou bastante próximo do Vanderlei Bagnato [professor do Instituto de Física de São Carlos], que é alguém que eu conheço desde o começo da pós-graduação dele, por exemplo. Temos várias colaborações em andamento com o pessoal de São Carlos.

Uma discussão forte na ciência brasileira atualmente é sobre a necessidade de os cientistas se tornarem criadores de tecnologias com potencial econômico, e até de virarem empresários. Como o sr. vê essa questão?
É claro que, como físico, acho que é sempre importante você financiar a pesquisa básica [sem aplicação imediata]. Mas trata-se, no fundo, de uma falsa dicotomia. Ambas as coisas são importantes.

Finalmente, a pergunta que todo repórter acaba fazendo para ganhadores do Nobel: o que o sr. fez com o dinheiro do prêmio?
A primeira coisa que fizemos foi gastar bastante dinheiro para levar a família e os amigos para a Suécia para que eles pudessem assistir à cerimônia de premiação. E os impostos relativos ao prêmio ainda nem foram descontados. Sinceramente, não sei se vai sobrar alguma coisa depois de tudo isso (risos).


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