Folha de S. Paulo


'Teletransporte vai continuar sendo ficção', diz Nobel

Os ganhadores do Prêmio Nobel parecem ter descoberto o Brasil em 2013. Após um evento no fim de fevereiro que reuniu cinco deles na USP de São Carlos, mais três laureados estiveram no Rio nesta semana --entre eles o francês Serge Haroche, 68, em sua segunda visita ao país neste ano.

"No meu caso é coincidência, acho, mas não se pode negar que a ciência brasileira hoje está muito mais aberta à colaboração com o exterior e muito mais competitiva", disse Haroche à Folha. O vencedor do Prêmio Nobel em Física do ano passado veio participar da reunião magna da Academia Brasileira de Ciências.

Nascido no Marrocos, Haroche construiu sua carreira científica na França, onde vive hoje. Sua especialidade é manipular e observar o comportamento de partículas de luz, os fótons, com a ajuda de átomos especialmente preparados. Isso permite entender os fenômenos bizarros que povoam o Universo na escala quântica, o mundo das partículas elementares, que às vezes parecem estar em dois lugares ao mesmo tempo ou desenvolver estranhas conexões à distância.

Em entrevista por telefone, ele disse que é impossível prever que tipo de tecnologia poderá surgir a partir do maior controle do misterioso mundo quântico, mas não se mostrou muito animado com a perspectiva de teletransportar pessoas.

"No fundo, o teletransporte quântico envolve apenas o transporte de um tipo muito específico e muito sutil de informação, que é a informação dos estados quânticos de uma partícula. Não é nem de longe uma passagem dimensional, está mais para um fax."

Patrick Kovarik/AFP
O físico Serge Haroche, no Collège de France, em Paris
O físico Serge Haroche, no Collège de France, em Paris

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Folha - Mesmo um ganhador do Nobel como o sr., o físico americano Richard Feynman, morto em 1988, costumava dizer que ninguém entende a mecânica quântica. Está ficando mais fácil entender a lógica desse domínio aparentemente maluco da física?
Serge Haroche - É verdade que a lógica do mundo quântico é muito diferente daquela que conseguimos estabelecer usando nossos próprios sentidos. Em grande parte isso acontece simplesmente porque o nosso organismo e o nosso cérebro evoluíram num ambiente no qual os fenômenos quânticos não são relevantes, o chamado mundo clássico.

É por isso que nós não conseguimos entender de maneira intuitiva o funcionamento dos processos quânticos, embora seja possível descrevê-los matematicamente com grande precisão.

No entanto, o que as últimas décadas trouxeram é uma capacidade de controle muito melhor dos fenômenos quânticos e da transição do ambiente quântico para o ambiente clássico, a chamada 'decoerência' [quando, por exemplo, as múltiplas e infinitas trajetórias possíveis de uma partícula no estado quântico são reduzidas a uma única trajetória pela ação de um observador]. É como se fosse um vazamento da informação quântica.

Hoje conseguimos controlar muito melhor essa transição. Mas, de fato, é algo extremamente contraintuitivo, embora seja possível dissecar o fenômeno intelectualmente.

Mas não é estranho que exista essa fronteira entre o quântico e o clássico? O Universo não deveria se comportar sempre segundo as mesmas leis, independentemente da escala?
O que nós estamos vendo é que essa fronteira não é muito clara. Trata-se, no fundo, de uma questão de tecnologia: até que ponto você é capaz de controlar seu ambiente para que a decoerência não aconteça, ou seja, que tamanho máximo o seu sistema pode ter e ainda assim se comportar de modo quântico. E há trabalhos muito bonitos sendo feitos nesse sentido, com grande número de elétrons, por exemplo, mostrando como é possível sobrepujar a decoerência. Tem havido muito progresso nessa área, embora seja cedo para dizer qual o limite desse controle.

O sonho de ficção científica ligado a esse tipo de pesquisa é o teletransporte quântico de objetos macroscópicos, como um carro ou uma pessoa...
E eu realmente acho que vai continuar sendo ficção científica, porque no fundo o teletransporte quântico envolve apenas o transporte de um tipo muito específico e muito sutil de informação, que é a informação dos estados quânticos de uma partícula. Não é nem de longe uma passagem dimensional, está mais para um fax.

E você, na verdade, destrói a informação original e cria uma cópia dela em outro lugar, então seria algo muito perigoso, poderia haver erros nesse processo...

Então o capitão Kirk, da série "Jornada nas Estrelas", na qual o teletransporte é uma tecnologia corriqueira, é um sujeito ainda mais corajoso do que a gente imaginava?
Sim (risos). A verdade é que nós nunca sabemos qual será o resultado tecnológico da pesquisa básica, não dá para traçar uma linha direta entre o que fazemos hoje e o que teremos daqui a 50 anos ou cem anos quando pensamos em aplicações. O mais provável, e é possível ver isso numa série de áreas, é que as grandes inovações tecnológicas surjam a partir de vários campos diferentes da pesquisa básica, sendo que, no começo, nenhum deles parecia ter algo a ver com a tecnologia que apareceria mais tarde.

É o caso do laser, certo? Ninguém estava pensando em desenvolver um novo tipo de bisturi para cirurgias de miopia, as pessoas só estavam interessadas em entender as propriedades daquele tipo esquisito de luz.
E a mesma coisa aconteceu no caso da ressonância magnética, que só existe graças a duas pessoas [o americano Paul Lauterbur, morto em 2007, e o britânico Sir Peter Mansfield] que estavam trabalhando com ciência básica. Se você mostrasse a eles, na época, um aparelho de ressonância atual, seria algo completamente inesperado, porque criar o aparelho exigiria ter à mão computadores com capacidade de processamento rápido e uma série de outras coisas que só apareceriam bem mais tarde.

Isso vale também para o nosso trabalho. No curto prazo ele pode levar a relógios atômicos mais precisos e ao avanço da chamada comunicação quântica, na criptografia de dados sigilosos. Também se fala em computadores quânticos, mas não seria um simples computador de mesa, mas sim algo para simular esses processos quânticos complicados que temos dificuldade de entender totalmente hoje. Estaria mais para um simulador quântico, digamos, voltado para fins muito específicos.

Já é a segunda vez que o sr. visita o Brasil só neste ano. Há pouco tempo, o sr. esteve na USP de São Carlos com mais quatro ganhadores do Nobel, e agora outros dois vencedores do prêmio vieram. Há alguma coisa diferente acontecendo na ciência brasileira atual ou é só coincidência?
No meu caso é coincidência, acho, mas não se pode negar que a ciência brasileira hoje está muito mais aberta à colaboração com o exterior e muito mais competitiva. Isso vale tanto para a física que é feita em São Carlos quanto aqui no Rio de Janeiro, entre outros lugares.
A minha relação com o Brasil, na verdade, é bastante antiga, tem mais de 30 anos. Começou nos anos 1980, quando surgiram acordos de cooperação entre o CNRS [Centro Nacional de Pesquisa Científica, francês] e órgãos brasileiros. Foi quando comecei a colaborar, na área de óptica quântica, com gente como Luiz Davidovich e Moysés Nussenzveig [ambos físicos da UFRJ].

Tendo nascido no Marrocos, o sr. hoje tem contato com a ciência feita em países islâmicos? Apesar do estereótipo do fundamentalismo, a ciência tem avançado nesses lugares?
Eu deixei o Marrocos com 12 anos de idade e só voltei para lá no ano passado, curiosamente. Já tinha sido convidado para visitar o país antes, e é claro que, depois do Nobel, eles estavam com ainda mais vontade de me receber.

Fui para lá a convite da Academia Marroquina de Ciências e fui muito bem recebido. Devo dizer que eles fazem um bom trabalho teórico por lá, do mesmo nível do que é feito na França. O lado experimental é mais difícil para eles porque falta dinheiro. Nesse aspecto, é como se eles estivessem no estágio em que o Brasil estava 20 anos atrás --aqui o financiamento melhorou muito.

Acho importante apoiarmos a ciência em locais como o Marrocos, que está longe de ser fundamentalista e onde há esperança de que a ciência traga alguma estabilidade e progresso para uma região que ainda é frágil.


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