Folha de S. Paulo


Análise: A Ucrânia está perto da 'guerra total'?

Conflito no leste da Ucrânia já matou 5,4 mil e deixou milhares de desabrigados, diz ONU

"Nós sempre pensamos que a guerra está distante. Ainda assim, a poucas horas de voo, no leste da Europa, há homens e mulheres - civis - que estão morrendo todos os dias."

A declaração sombria do presidente francês, François Hollande, foi ouvida quando ele e a chanceler alemã, Angela Merkel, se preparavam para uma reunião com Vladimir Putin em Moscou na sexta-feira. Na pauta, o que o próprio Hollande definiu como possibilidade de uma "guerra total".

Há quase um ano, a fuga do presidente ucraniano Viktor Yanukovich para a Rússia marcava a vitória do movimento pró-União Europeia na Ucrânia e, consequentemente, uma derrota da Rússia, cuja influência política, histórica, étnica e linguística na Ucrânia foram ignoradas em prol de um sonho - o de uma Ucrânia integrada aos seus vizinhos do oeste.

Mas o que se seguiu foi uma sinistra escalada militar sem precedentes na Europa desde o final da Guerra Fria, envolvendo duas visões irreconciliáveis do mundo pós-União Soviética, alimentada pelos fantasmas nacionalistas ucranianos e russos e pela incapacidade da diplomacia europeia e americana.

Com os rebeldes pró-Rússia mostrando vigor assustador, tendo conquistado cerca de 500 quilômetros quadrados de território em quatro meses, europeus e EUA agora voltam a se mexer e cogitam soluções radicalmente diferentes para paralisar o conflito, depois do fracasso imediato das sanções econômicas impostas a Moscou.

Resta saber se essas soluções serão eficientes ou se o mais provável é a "guerra total" - com envolvimento direto de outros países, escalada através de outras fronteiras e muito mais sangue.

ARMAS OU CETICISMO DIPLOMÁTICO

Richard Sakwa é considerado uma das maiores autoridades acadêmicas do mundo em política russa e pós-soviética, tendo escrito dezenas de ensaios e livros sobre a lógica por trás do "inimigo" do Ocidente no Kremlin.

Em seu livro recém-lançado na Grã-Bretanha, Frontline Ukraine - Crisis in the Borderlands ("Frente de Batalha Ucrânia - Crise na Fronteira", em tradução livre), Sakwa resume as duas principais causas do conflito que hoje vemos - a incapacidade do Ocidente de criar uma nova ordem geopolítica inclusiva para a Federação Russa no pós-Guerra Fria e a divisão política ucraniana.

Confronto no leste da Ucrânia teve início após anexação da península da Crimeia pela Rússia

A primeira causa é associada ao fato de o Ocidente nunca ter sido capaz de superar as instituições "vitoriosas" da Guerra Fria, criando um ambiente inclusivo para Moscou. Pelo contrário, a Otan avançou para o leste, para perto da fronteira russa, no que Moscou sempre considerou uma ameaça a seu espaço de influência e existência.

A segunda causa tem íntima ligação com a formação da Ucrânia como nação - leste e sul russófonos, com forte influência do poderoso vizinho e favorável a um país multilinguístico, neutro, com boas relações com Moscou; oeste querendo ser "europeu", com uma distinta identidade ucraniana, deixando para trás a "ocupação" russa - a região do oeste onde fica a cidade de Lviv só passou a ser soviética durante a 2ª Guerra Mundial.

Se concordarmos com Sakwa, qualquer solução para o atual conflito precisa contemplar as duas questões. E são tremendas questões, sem nenhuma solução fácil. A primeira envolve uma mudança radical de paradigmas em vigor desde 1991. A segunda, mudanças políticas profundas na Ucrânia que surgiu dos mortos na Praça Maidan, em Kiev, em 2013.

Do ponto de vista do Ocidente, o que vem acontecendo desde o ano passado é uma tentativa de um líder inescrupuloso, Vladimir Putin, de restaurar a glória da velha União Soviética. De se impor à força, sem diálogo, retomando práticas que todos esperavam que tivessem ficado no passado da Europa - a anexação da Crimeia, por exemplo.

Para a Putin, porém, o Ocidente quer se impor com sua visão de mundo, suas instituições, suas regras, e não deu a Moscou a real chance de participar, de forma conjunta, da construção dessa nova ordem. No pós-Guerra Fria, criou-se o que Sakwa chama de "Paz Fria" - com Moscou e o Ocidente mantendo uma lógica de competição sem, entretanto, reconhecer que ela existisse.

Evidentemente, a Europa e os Estados Unidos esperavam que, sob o peso das sanções econômicas do último ano, Putin perdesse apoio político internamente na Rússia. Não foi isso que aconteceu, pelo contrário - pesquisas mostram que o apoio a suas políticas continua alto e o ambiente doméstico russo é de crescente antagonismo com o Ocidente.

GASOLINA NA FOGUEIRA

Assim, a primeira solução que vem sendo cogitada no momento, a americana, é a que tem mais potencial para gerar uma "guerra total". Os Estados Unidos cogitam destinar armamento defensivo ao exército ucraniano contra os rebeldes pró-Rússia.

Ao fazer isso, os EUA estarão jogando gasolina na fogueira anti-Ocidental de Putin. Se antes ele só podia sugerir que o Ocidente estava alimentando o conflito para impor sua vontade, nesse caso, ele terá um argumento palpável para, sim, enviar tropas abertamente a Lugansk e Donetsk.

A ideia americana foi criticada abertamente por Merkel. Ela disse que não poderia imaginar "qualquer situação em que, se o Exército ucraniano receber um melhor equipamento, o presidente Putin fique tão impressionado que venha a pensar que vai perder militarmente".

Mas as declarações do governo americano dão a entender que essa saída está sendo considerada seriamente. Uma linguagem estranhamente evocativa da Guerra Fria vem sendo usada pelo vice-presidente, Joe Biden, da mesma forma que vem sendo usada por Putin.

"Vezes demais o presidente Putin prometeu paz e entregou tanques, soldados e armas", disse no sábado Biden, que preferiu, no dia anterior, ficar em Bruxelas em vez de se juntar a Merkel e Hollande na viagem a Moscou.

"Então, vamos continuar apoiando a segurança da Ucrânia, não para incentivar a guerra, mas para permitir que a Ucrânia se defenda."

Os detalhes da segunda solução, um novo plano de paz europeu, voltarão a ser discutidos por Merkel, Hollande, Putin e o líder ucraniano Petro Poroshenko neste domingo.

Sabe-se, porém, que a base da proposta não é muito diferente da do acordo fracassado de Minsk, de setembro passado. Inclui a criação de uma zona desmilitarizada perto da linha de batalha e comprometimento de cessar-fogo dos dois lados.

O que não se fala é integrar a Rússia num processo real de diálogo político interno na Ucrânia, nem um compromisso europeu com a criação de novas instituições que levem em conta a visão russa de um mundo multipolar.

Da mesma forma, a simples ideia de a solução americana estar sendo aventada, além da existência e ampliação das sanções, alimenta ainda mais a desconfiança dos russos, que só tendem a ficar cada vez mais inflexíveis, obstinados frente às imensas dificuldades, como em tantos momentos em sua história.

INCERTEZAS

Ao contrário do que muitos pensam, a Rússia se beneficiaria muito mais de uma Ucrânia que mantenha sua união nacional.

Em um artigo publicado no jornal Moscow Times, Josh Cohen, ex-funcionário do Departamento de Estado dos EUA, enumera alguns motivos - entre eles, o problema do custo de reconstrução do leste ucraniano, que poderia ser dividido com o Ocidente.

Moradores do leste da Ucrânia são obrigados a deixar suas casas em meio à escalada de confronto armado

Putin defende a federalização ucraniana, com Donetsk e Lugansk passando a ter poder de veto em qualquer aprofundamento das relações de Kiev com o Ocidente, mas na prática tendo imensa autonomia do governo central - podendo, inclusive, participar da União Euroasiática que a Rússia criou com ex-países soviéticos.

Mas a elite política que derrotou os russos em Kiev no ano passado está disposta a voltar atrás e dividir o poder?

Dadas as possíveis consequências de armar o exército ucraniano e os imensos problemas com que Obama enfrenta na esfera internacional (o autodenominado 'Estado Islâmico', por exemplo), o mais provável é que, apesar da retórica, a ideia não se concretize.

A proposta europeia, com a continuidade das negociações diplomáticas, é a saída mais lógica, ainda que já venha sendo tentada desde o ano passado sem sucesso. Se a negociação continuar, a "guerra total" é evitada, mas o lento sangramento da Ucrânia prossegue até não se sabe quando.

O fator crucial, no final das contas, será o efeito cumulativo das sanções. Neste mês, o Ocidente pode banir a Federação Russa do Swift, o sistema que integra os bancos globalmente. Isso seria um imenso baque para os bancos do país.

O cálculo é que, em dado momento, o preço pago por Putin para manter seu envolvimento na Ucrânia seja tão alto que crie rachaduras na elite que o sustenta, potencialmente afastando-o.

Quando isso acontecerá? Primeiro, não se sabe nem se acontecerá. E, se acontecer, não se sabe quem o irá suceder. Nada impede que seja mais do mesmo.

*Rafael Gomez é mestre em estudos da Rússia e da Europa Oriental pela Universidade de Birmingham, no Reino Unido.


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