Folha de S. Paulo


Copa agrava falta de moradias em Brasília, dizem sem-teto

Recheio das colunas que sustentam e distinguem o estádio Mané Garrincha –a arena mais cara da Copa de 2014, em Brasília–, o concreto ainda não chegou ao Acampamento Esperança de um Novo Milênio, a 40 quilômetros do centro da capital federal.

Ali, nas bordas da cidade-satélite de Planaltina, 220 famílias vivem há cinco anos em barracos de madeirite, cobertos por telhas improvisadas. Nas ruas de terra, crianças brincam em meio ao esgoto, que corre a céu aberto.

"Já não aguentava mais pagar aluguel, por isso vim para cá", diz à BBC Brasil o vendedor ambulante Antonio dos Reis, pai de quatro filhos. "E com a Copa, tudo está ficando ainda mais caro".

O argumento de que o Mundial inflacionou o mercado imobiliário em Brasília, ampliando o déficit habitacional local, tem motivado uma série de protestos contra o torneio na cidade. Na terça-feira (27), centenas de sem-teto participaram de uma manifestação perto do novo estádio, que terminou em confronto com a polícia.

Os protestos do grupo são liderados pelo MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto), que também tem se manifestado em outras sedes da Copa e controla uma ocupação perto do estádio de Itaquera, palco da abertura do Mundial, em São Paulo.

Em Brasília, o MTST diz que a relação entre os gastos da Copa e a falta de moradias tem um agravante. A construção do estádio na cidade foi inteiramente bancada por dinheiro público –os custos foram cobertos pela Terracap, a agência imobiliária estatal que gerencia as terras públicas de Brasília e é controlada pelos governos do Distrito Federal e pela União.

O MTST diz que, para compensar os gastos com a construção do estádio –estimados em pelo menos R$ 1,5 bilhão pelo Tribunal de Contas do Distrito Federal–, a Terracap está acelerando seus leilões de terras públicas.

ESPECULAÇÃO

A estratégia, segundo os sem-teto, tem estimulado a especulação imobiliária, o que encarece os preços de terras e alugueis no Distrito Federal, dizem eles.

O movimento defende que a Terracap reduza o ritmo de vendas a imobiliárias e agentes privados e doe mais áreas para a construção de casas populares.

"O pobre está ficando sem vez", diz Maria José Costa Almeida, uma das líderes do MTST na capital federal e moradora do acampamento em Planaltina. "Hoje o aluguel mais barato que você acha, num barraco de fundo, sai por R$ 500, 600. Se vai botar água, luz, alimento e remédio para uma família com cinco ou seis crianças, não tem condição".

Também crítico aos gastos do governo do DF com o Mundial, o Comitê Popular da Copa cobra uma auditoria nas contas da Terracap para avaliar se a empresa corre o risco de falir por ter bancado a construção do estádio.

Questionada pela BBC Brasil, a Terracap não respondeu quanto dinheiro tinha em caixa antes da construção da arena e quanto dinheiro tem agora. A agência tampouco respondeu se ampliou o ritmo de leilões para cobrir gastos com o estádio.

Em nota, o governo do Distrito Federal (GDF) disse que as "contas da agência são acompanhadas pelo Ministério Público, o Tribunal de Contas e a Secretaria de Estado de Transparência do DF".

O governo afirmou que os gastos com a Copa não alteraram seus investimentos em habitação e que tem como meta "colocar em construção 100 mil moradias de interesse social até o fim de 2014". "O GDF já começou a entregar as primeiras moradias, cerca de 10 mil".

As novas casas, diz o governo, atenderão parte dos 375.960 candidatos a moradias populares cadastrados no Distrito Federal.

A líder do MTST Maria José Costa Almeida diz, porém, que "nenhuma família do movimento que a gente conhece recebeu casa", embora todas estejam cadastradas no programa habitacional do governo, segundo ela. "Só vimos (as casas) nas maquetes, naqueles desenhos bonitinhos." "Tenho 13 anos de inscrição no Morar Bem (programa habitacional do governo do DF) e nunca fui convocada", afirma Almeida.

DEFICIT

Segundo um estudo que acaba de ser divulgado pela Fundação João Pinheiro, instituto que historicamente estuda a carência de moradia no país em parceria com o Ministério das Cidades, o deficit habitacional no Distrito Federal atinge 16% dos seus domicílios, enquanto no país como um todo a taxa é de 9%.

Para contabilizar o deficit habitacional de cada cidade, o estudo considera quatro fatores –o número de moradias incapazes de atender dignamente aos moradores, o total de casas compartilhadas por mais de uma família contra sua vontade, as residências com mais de três moradores em média por dormitório, e os locais cujo aluguel representa mais de 30% da renda de famílias pobres (que ganham até três salários mínimos).

Críticos à Copa em Brasília questionam ainda a decisão do governo de erguer com dinheiro público um estádio para 70 mil pessoas numa cidade sem tradição futebolística. Eles também citam as várias irregularidades apontadas sobre a obra num relatório do Tribunal de Contas do DF.

Segundo o TCDF, embora tenha sido orçado inicialmente em R$ 700 milhões, o estádio deverá custar ao menos R$ 1,5 bilhão.

O tribunal diz que, por falhas no registro de benefícios tributários, o GDF deixou de recuperar R$ 39 milhões com a construção.

O relatório apontou ainda superfaturamento de R$ 89 milhões na obra e diz que o governo deixou de aplicar multa de R$ 35 milhões pelo atraso na conclusão do estádio às empreiteiras responsáveis (Andrade Gutierrez e Via Engenharia).

Já o governo afirmou à BBC Brasil que "inexistem irregularidades ou superfaturamento" na obra do estádio. Em nota, a administração diz que "não é correto afirmar que R$ 700 milhões era o valor previsto para a construção da arena", já que esse montante cobria apenas o contrato para o "esqueleto do estádio", mas não itens como cobertura, gramado e placares eletrônicos.

O governo afirma que o custo total do estádio é de cerca de R$ 1,4 bilhão. O valor não inclui despesas com paisagismo e urbanização no entorno da construção que, segundo o governo, não podem ser contabilizadas como custos da arena.

A imponente fachada do estádio recebeu elogios até entre algumas famílias do acampamento em Planaltina. Para a moradora Maria de Fátima, porém, "tinha coisa muito mais importante para fazer". "Aqui tem muita gente que passa precisão, é muito sofrimento". Ela diz que a Copa só vai mostrar "o lado bonito" da cidade. "A vida real não vão mostrar. Isso eu acho errado."


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