Folha de S. Paulo


Peru e Chile iniciam disputa por 300 m de praia

A Corte Internacional de Justiça de Haia, na Holanda, encerrou no final de janeiro a disputa marítima entre Chile e Peru que se arrastava havia mais de cem anos.

A decisão diz respeito a uma faixa marítima de 38 mil quilômetros quadrados de extensão, em uma região rica em recursos pesqueiros no oceano Pacífico.

Mas, ao fixar o ponto de referência para esta fronteira oceânica, a corte iniciou uma outra polêmica que se resume a 300 metros de extensão na areia da praia, com algumas algas e moluscos.

Esta área é o chamado "triângulo terrestre", um pedaço da costa que a resolução da Corte Internacional de Justiça deixou no limbo. E os governos do Chile e do Peru não conseguem entrar em acordo sobre esta faixa de areia.

Momentos depois do anúncio da decisão de Haia, o presidente chileno, Sebastián Piñera, iniciou a nova disputa ao afirmar em um discurso em cadeia nacional que a sentença "ratifica o domínio chileno do triângulo terrestre respectivo".

O presidente peruano, Ollanta Humala, respondeu quatro dias depois, em um discurso no Congresso. Ele afirmou que a resolução do tribunal definiu os "limites marítimos, pois a sentença emitida não se pronuncia sobre o limite terrestre".

Além disso, Humala também afirmou que a decisão não afeta a "fronteira terrestre do Peru, que se inicia no ponto Concórdia, conforme o estabelecido no Tratado de 1929 e nos trabalhos de demarcação, realizados pela comissão mista de limites".

Segundo o acordo que os dois países firmaram em 2014, depois que o Chile devolveu ao Peru a região de Tacna, que tinha sido tomada na Guerra do Pacífico (1879-18883), a fronteira deveria estar na costa, 10 quilômetros ao norte de uma ponte localizada a pouca distância do Pacífico, sobre o rio Lluta, na parte chilena.

INÍCIO DE PROBLEMA

O problema começou quando, ao colocar o primeiro marco para demarcar a linha limítrofe em 1930, não foi possível situá-lo nas coordenadas que estabelecia o tratado, na margem do mar. Só foi possível colocá-lo 260 metros terra adentro para que não fosse destruído pela maré.

Este marco, apesar de também ficar a dez quilômetros da ponta, ficou 300 metros mais ao norte do que o Peru reconhece como ponto Concordia, na costa.

A Corte de Haia estabeleceu que o ponto de referência para a fronteira marítima entre as duas nações é este marco, como pedia o Chile, e não o ponto Concordia, como exigia o Peru.

Piñera afirmou, em uma entrevista à Radio Cooperativa do Chile na segunda-feira, que os governos dos dois países sempre estiveram de acordo com o fato de que "a fronteira terrestre começa no mesmo ponto em que começa a fronteira marítima e a decisão de Haia foi muito clara ao estabelecer que a fronteira marítima começa no marco 1 e, por isso, (lá começa) também a fronteira terrestre".

O Peru, por sua vez, lembra que o tribunal também especificou que não era sua missão determinar a posição onde começava a fronteira terrestre e que esta "poderia não coincidir com o ponto de início da fronteira marítima".

Com isso, o Peru interpreta que a decisão deixou em aberto a possibilidade de o país ficar com este pedaço de terra, mesmo que o mar em sua margem pertença ao Chile. É o que se conhece como "costa seca", um território ribeirinho sob a soberania de um país diferente daquele a que pertencem as águas.

Esta situação tem alguns antecedentes no mundo. A maior "costa seca" do mundo está na África, na zona do Lago Malauí, que separa a Tanzânia do Malauí.

O pequeno triângulo terrestre entre o Chile e o Peru já foi motivo de disputa em 2001. Mas, desde então, o assunto estava parado.

Agora, depois da decisão de Haia que deu ao Peru 21 mil quilômetros quadrados que até então estavam sob domínio chileno, houve uma retomada do tema, com declarações de embaixadores, especialistas, políticos e chanceleres dos dois países.

PSICOLOGIA?

Os observadores dos dois lados da fronteira consideram que o ressurgimento do debate se deve mais à rivalidade que predominou nas relações bilaterais desde a Guerra do Pacífico.

Para o especialista peruano Ramiro Escobar, "este pedaço de terra é uma questão mais psicológica: ver quem ganha e quem perde".

"É um tema que em algum momento terá que ser resolvido, mas na minha opinião, não (será) agora", acrescentou.

No Chile, o analista internacional Raúl Sohr afirma que a desavença é uma "atitude caprichosa dos dois países, onde há fricção e uma desconfiança mútua evidente", pois, uma vez que "se conheceu a decisão (de Haia), nenhum lado teve uma satisfação plena e esta é uma continuação deste mal-estar".

Farid Khanhat, analista peruano, afirma que o assunto pode afetar o acordo de fronteira fechado em 1929.

"Por que todos os pontos (de outros tratados) não poderiam ser revisados mais à frente? Este é o assunto, não o valor intrínseco que possa ter o território em questão", disse.

Mas os especialistas não esperam que mais esta polêmica prejudique as relações entre os dois países.

"É impossível que um pedacinho de costa seca, onde há alguns moluscos, tenha mais peso que toda a quantidade de relações em vários níveis que estão em jogo", disse Escobar.

"Seria impensável que dois países soberanos, frente a um problema desta natureza, não sejam capazes de resolver cara a cara", afirmou Sohr.

TACNA E ARICA

Na região de fronteira, na cidade peruana de Tacna e na chilena Arica, este assunto não é tema de discussão. Mesmo que as duas cidades reivindiquem este pequeno pedaço de terra, a polêmica parece algo absurdo aos moradores da região.

"Para nós é um tema ridículo. Em 40 anos nunca houve interesse por Arica e agora, ao perder um triângulo marítimo e 3,7 mil metros quadrados terrestres, vem o interesse do governo e dos meios de comunicação. Dá um pouco de nojo", disse Marcelo Moreno, locutor da Rádio Frontera Norte de Arica.

Em Tacna, Victor Marin, da Sociedade Patriótica Irredentos de Tacna, Arequipa e Tarapacá, considera que "este triângulo já está definido mediante o tratado de 1929".

O que interessa agora para a cidade de Marin, segundo ele, é que depois de não conseguir junto a Haia a zona marítima mais próxima da costa que pediam, o governo peruano realize algumas obras "para que Tacna não continue paralisada e esquecida economicamente".


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