Folha de S. Paulo


Ideias defendidas por Thatcher influenciaram Brasil nos anos 90

O impacto das ideias defendidas pela ex-primeira-ministra britânica Margaret Thatcher, que morreu nesta segunda-feira aos 87 anos de idade, foi muito além da Europa e atingiu também outras partes do mundo como a América Latina, onde a Dama de Ferro continua tendo defensores e detratores fervorosos.

Thatcher e outros líderes, como o presidente americano Ronald Reagan (1911-2004), lideraram uma tendência nos anos 1980 pela adoção do ideário neoliberal.

No Brasil, esse ideário chegou apenas uma década depois, inspirando parte das políticas econômicas adotadas principalmente durante os governos de Fernando Collor de Mello (1990-1992) e Fernando Henrique Cardoso (1995-2002). Estes períodos foram marcados pela abertura da economia brasileira a mercados estrangeiros e pela privatização de empresas estatais.

Para entender qual foi a importância deste legado no Brasil, a BBC Brasil conversou com três economistas de vertentes diferentes.

Ex-presidente do Banco Central (1980-1983), PhD em Economia pela Universidade de Chicago e diretor do Centro de Economia Mundial da Fundação Getúlio Vargas, Carlos Langoni considera que Thatcher foi uma "grande estadista" graças a sua visão de futuro. Ele avalia que o legado das políticas neoliberais continua vivo e é em parte responsável pelo sucesso inclusive da China comunista.

Marcio Pochmann, professor da Unicamp, ex-presidente do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) e presidente da Fundação Perseu Abramo, entidade ligado ao PT, defende que as políticas neoliberais defendidas por Thatcher chegaram tardiamente ao Brasil, em uma época que ficou marcada por problemas sociais. Ele também avalia que tais ideias continuam vivas e estão sendo aplicadas em países da Europa para combater os efeitos da crise.

Já Antônio Corrêa de Lacerda, professor da PUC-SP e ex-presidente do Conselho Federal de Economia, afirma que as ideias econômicas de Thatcher também tiveram impacto em órgãos multilaterais como o FMI e o Banco Mundial, mas avalia que agora o mundo caminha para um "novo consenso" onde não existe mais a dicotomia "Mercado versus Estado". Lacerda lembra ainda que a ex-premiê representou um modelo para as mulheres em todo o mundo.

Confira abaixo as entrevistas concedidas pelos três economistas à BBC Brasil.

CARLOS LANGONI

BBC Brasil - Qual é o legado deixado pela ex-premiê Margaret Thatcher?
Carlos Langoni - Eu acho que Thatcher inspirou toda uma mudança estrutural na economia mundial, que foi o processo de liberalização econômica e principalmente uma revisão do papel do Estado na economia.
Na realidade, isso gerou um impacto muito além do Reino Unido. Algumas economias avançadas seguiram essa rota de reduzir o peso do Estado na economia, mas principalmente economias emergentes, entre elas, na América Latina, eu citaria o exemplo do Chile, (que foi) a economia que talvez mais tenha adotado a linha Thatcher de liberalização econômica, privatização e abertura da economia.
No próprio Brasil, [houve impacto] principalmente no primeiro mandato do governo Fernando Henrique Cardoso. Houve uma onda que começou com [Fernando] Collor, mas consolidada com o Fernando Henrique Cardoso, [que foi] uma onda de privatizações que mudou a face da economia brasileira, principalmente em setores-chave como siderurgia, telecomunicações e o próprio setor elétrico, [que] foi em parte privatizado.
Eu acho que a Thatcher foi de fato uma grande estadista, com essa visão de futuro, ela se antecipou no tempo.

Esse legado neoliberal foi posto em dúvida, principalmente a partir da crise de 2008. O senhor acha que ele ainda está vivo?
Eu acho que ele está completamente vivo. Na verdade, se você analisar o resultado pós-crise de 2008, que muito diziam que seria uma nova versão da grande Depressão (de 1929) e que o capitalismo estaria liquidado, você nota o contrário.
As economias mais abertas e as economias em que o setor privado opera com mais eficiência foram as que saíram mais rapidamente da crise.
O maior exemplo do legado da Thatcher é a própria China.
A China, na verdade, é um exemplo de uma economia em transição. É uma economia totalmente dominada pelo Estado, tanto a (da) China como (a da) Rússia, após a queda do Muro de Berlim, foram economias que fizeram a transição para economias de mercado em graus distintos, cada uma respeitando as suas particularidades.
Na China ainda existem as empresas estatais, mas o espaço ocupado pelo setor privado explica em grande parte o milagre chinês. O milagre chinês tem duas explicações: foi exatamente a liberalização dos mercados, a ênfase em uma plataforma de exportações e, é lógico, a capacidade de investimento e poupança da economia chinesa.
Mas, sem esse processo de liberalização econômica, a China não teria se transformado na potência econômica que ela hoje é.

ANTÔNIO CORRÊA DE LACERDA

BBC Brasil - Qual o legado que Thatcher deixa para o Brasil e para o mundo?
Antonio Corrêa de Lacerda - Ela exerceu um papel muito relevante. Sem entrar no mérito ideológico, que é uma discussão ampla, ela representou um ícone do neoliberalismo ao adotar no Reino Unido um programa rígido de privatizações.
Isso acabou servindo de referência para a América Latina, Brasil e outros países do mundo, junto com as ideias neoliberais que surgiram também nos órgãos multilaterais como o próprio FMI e Banco Mundial e em alguns setores da academia.
Thatcher teve esse papel simbólico importante e, sem dúvida, também representou um modelo para as mulheres, para o novo papel que as mulheres passaram a ter no comando da economia, seja nos governos, empresas ou organizações.

Esse legado neoliberal foi muito questionado, principalmente a partir da crise de 2008. Ele está vivo ainda ou é parte da história?
A história sempre convive com um processo de se refazer ideias. Nós estamos caminhando agora para um novo consenso, que não é o Consenso de Washington, que representava o liberalismo, mas um consenso de que é importante, sim, que o setor privado participe da economia, mas há atividades que são inerentes ao Estado e o Estado não pode abrir mão de fazê-las, que são tarefas ligadas à regulação, à fiscalização e à coordenação da economia, e isso é indelegável. O que o Estado pode delegar, mediante a um bom aparato regulatório, é a operação da produção e dos serviços.
Não se trata mais da dicotomia Estado versus Mercado, mas talvez a solução seja Estado e Mercado.

O senhor avalia que estas ideias neoliberais de Thatcher tiveram um impacto no Brasil durante os anos FHC, por exemplo? Podemos chamar a política econômica de FHC de neoliberalismo?
Sim, em parte sim. Se você pegar o governo Collor até FHC, passando pelo Itamar Franco, que talvez ficaria excluído dessa classificação, eu diria que houve muitas medidas de inspiração neoliberal, (como) privatizações, abertura da economia, cortes de gastos públicos, liberalização dos mercados. Então teve uma grande parte de influência da visão neoliberal.

E essa influência diminuiu bastante nos anos Lula?
Diminuiu bastante, em função dos novos tempos, não só no Brasil, mas no mundo, e da necessidade de se criar uma terceira via, nessa linha que eu falava, não é Estado versus Mercado, mas é Estado e Mercado.
Um bom exemplo disso é a visão da presidente Dilma (Rousseff), porque ela prega um Estado forte, mas tem aberto cada vez mais o diálogo com a iniciativa privada e que cooptar o setor privado para as áreas de infraestrutura e serviços.

MARCIO POCHMAN

BBC Brasil - Em sua avaliação, qual o impacto que Thatcher teve nas economias do Brasil e do mundo?
Marcio Pochmann - Ela, junto com o (ex-presidente americano) Ronald Reagan, foram os principais ícones de uma ruptura na trajetória de políticas econômicas e sociais que tinham uma visão keynesiana, reformista, social-democrata, que ganhara grande importância no mundo a partir do encerramento da Segunda Guerra Mundial.
O receituário que ela defendeu é um receituário que trouxe transformações significativas, especialmente na Europa e na América Latina, de modo geral, e com impactos com grande significância especialmente na questão mais social.
Essa pauta já era conhecida. Foi uma pauta até derrotada em função dos acontecimentos do início do século 20 (...) e terminou sendo retomada a partir dos anos 1980.
Ao mesmo tempo, ela trouxe consigo, especialmente no caso da Inglaterra, uma tentativa de retorno ao que era a Inglaterra do final do século 19. E esse sucesso ela (Thatcher) não conseguiu ter, porque na verdade a Inglaterra não voltou à sua posição de centro dinâmico do mundo. A economia inglesa (britânica) continuou apresentando os sinais de decadência que já vinha acumulando desde o início do século 20.

Essas ideias também tiveram impacto no Brasil, principalmente nos anos 1990, não?
O neoliberalismo chegou de forma tardia ao Brasil. Ao longo dos anos 1980, nós tivemos uma pauta que foi praticamente antiliberal, a própria retomada democrática, a Constituição de 1988 foram em um sentido muito distinto daquele que apregoavam os chamados neoliberais.
O neoliberalismo chegou praticamente no final dos anos 1980 e ganhou grande importância por toda a década de 1990. Nesta década, coincidentemente, o Brasil perdeu posição relativa em termos internacionais. Nós decrescemos em termos de importância no mundo, do ponto de vista econômico, e convivemos com uma das mais graves crises sociais, especialmente olhando o desemprego e a redução dos salários na renda nacional.

Nos anos Lula esse ideário foi posto de lado?
No final dos anos 1990 nós vamos ver uma certa saturação desse receituário no mundo todo, especialmente na América Latina, (onde) se iniciam governos pós-neoliberais.
A partir do governo Lula, ficou muito clara essa ruptura em relação à agenda neoliberal por uma outra agenda com características muito diferentes daquelas apregoadas nos anos 1990 no Brasil.

Muita gente colocou em dúvida as ideias neoliberais a partir da crise de 2008. As ideias de Thatcher e Reagan fazem parte da história ou podem voltar?
Essas ideias não morreram, elas não foram superadas. Tanto que parte importante das medidas liberais continuam sendo implementadas e conduzidas, inclusive no enfrentamento da crise internacional nesses países europeus.
Entendo que em outras regiões, como é o caso latino-americano, as ideias neoliberais não foram derrotadas, elas sofreram uma espécie de harakiri [suicídio ritual de guerreiros japoneses], elas mesmas terminaram se esfacelando frente ao distanciamento entre o que apregoavam e a realidade latino-americana.


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