Folha de S. Paulo


Áreas úmidas da Amazônia são as mais vulneráveis às mudanças climáticas

Alberto César Araújo - 9.mar.2013/Folhapress
Pescadores na comunidade do Jatuarana na beira do rio Amazonas, zona rural de Manaus
Pescadores na comunidade do Jatuarana na beira do rio Amazonas, zona rural de Manaus

Um paradoxo assustador pode fazer com que a região da Amazônia mais vulnerável a incêndios catastróficos e a se transformar em savana por causa das mudanças climáticas seja justamente a que passa metade do ano debaixo d'água.

Tais áreas úmidas estão no coração da bacia do Amazonas e, se nada for feito, acabarão virando o calcanhar-de-aquiles da floresta diante do aquecimento global, alertam pesquisadores do Brasil, da Holanda e da China em artigo recente na revista científica "PNAS".

"Estamos falando de um sétimo da Amazônia, o que não é pouca coisa", ressalta o ecólogo carioca Bernardo Flores, um dos autores do estudo, que fez seu doutorado na Universidade de Wageningen, na Holanda. "Os estudos anteriores tinham praticamente ignorado essas áreas inundáveis, e o que a gente está descobrindo é que elas têm uma alta inflamabilidade." Trocando em miúdos: pegam fogo com surpreendente facilidade.

PELAS BEIRADAS OU PELO MEIO?

O espectro da chamada savanização - ou seja, a transformação da floresta fechada em áreas de vegetação aberta, com características de savana - ronda a Amazônia há tempos. Essa possibilidade costuma aparecer, por exemplo, em modelos computacionais do clima do futuro, que tentam prever o que acontecerá com a mata conforme a temperatura global for aumentando ao longo deste século.

Entre as consequências aparentemente prováveis do calor aumentado nas próximas décadas está a multiplicação dos eventos climáticos extremos e, em especial, dos episódios de seca prolongada. Em tese, segundo os modelos, a tendência é que as beiradas amazônicas - o sul e o leste da região - estivessem mais sujeitas à savanização, uma vez que já são, por natureza, regiões relativamente mais secas e sazonais (com estações do ano mais marcadas).

Quando os diferentes tipos de mata da região são examinados de forma detalhada, porém, o cenário muda bastante. O primeiro ponto importante verificado pelos pesquisadores é que as áreas úmidas, nas quais a floresta é inundada por meses todo santo ano, têm uma cobertura vegetal naturalmente menos densa que as áreas ditas "de terra firme", onde não se dá essa inundação: 66% de mata fechada contra 93%, respectivamente (veja infográfico).

Isso significa, em primeiro lugar, que as áreas inundáveis já são mais abertas à influência da luz solar e de outros parâmetros que podem ressecá-las.

Mas o dado mais revelador vem do estudo de centenas de áreas florestais amazônicas durante e após duas grandes secas que afetaram a bacia em anos recentes (1997 e 2005). Nesses episódios catastróficos, as áreas úmidas, por incrível que pareça, demoram muito mais para se recuperar do que a mata de terra firme.

"É uma vegetação difícil de secar, mas, quando seca, ela tem muito combustível acumulado, por conta de fatores como as raízes mais finas, que juntam muita matéria orgânica", conta Flores.

Além disso, o fogo que se espalha por esse tipo de mata não é um fogo relativamente "limpo", que incinera parte da floresta e segue em frente. A queima das matas úmidas costuma ser mais insidiosa e lenta, matando uma quantidade considerável de árvores pela raiz.

"Com impacto mais prolongado e recuperação mais lenta, a vegetação se mantém aberta por mais tempo e corre mais risco de ser aprisionada pelo fogo num estado aberto - essa é basicamente a definição de savana, uma vegetação que é mantida, em grande medida, pela interação com o fogo", explica o ecólogo.

Editoria de Arte/Folhapress
FOGO NAS ÁGUAS Por que regiões alagadas da mata podem ser mais vulneráveis
FOGO NAS ÁGUAS Por que regiões alagadas da mata podem ser mais vulneráveis

PEIXE EM PERIGO

Se esse cenário estiver correto, as implicações podem ser consideráveis. Para começar, nessas áreas, a riqueza de peixes - essenciais para o consumo de proteínas da população ribeirinha - tem relação estreita com a matéria orgânica que a própria floresta lança na água, por meio de frutos que são comidos pelos peixes ou por detritos que alimentam invertebrados, os quais, por sua vez, são alimento para outros peixes. Danificar a mata é atacar a base dessa cadeia de interpendências.

Em escalas maiores, o avanço dessa bagunça ecológica nas áreas úmidas, que estão presentes principalmente no centro e no oeste da Amazônia, poderia desencadear um efeito-dominó em toda a floresta, espalhando a instabilidade do centro para as bordas. Como se não bastasse, tais regiões são ricas em turfeiras - acúmulos de matéria orgânica já bastante decomposta que estão no fundo dos rios e podem queimar com intensidade cada vez maior num contexto mais seco.

"Você pode acabar queimando carbono que está parado lá há 2.000 anos", diz Flores - uma péssima notícia para o mundo, e não só para a Amazônia, já que essa queima intensificaria ainda mais as mudanças climáticas.

Enquanto as iniciativas globais para diminuir as emissões de gases estufa ainda patinam, é possível ao menos minimizar os riscos desse processo descontrolado atuando na própria Amazônia, diz Flores.

"Não acho correto proibir o uso do fogo, já que as populações amazônicas precisam desse recurso, mas dá para controlá-lo. Nos anos de seca extrema, por exemplo, é possível emitir alertas sobre o risco de provocar incêndios descontrolados, e isso provavelmente teria um efeito positivo", defende ele.


Endereço da página: