Folha de S. Paulo


Boa parte da Grande Barreira de Corais da Austrália está morta

A Grande Barreira de Coral australiana é há muito uma das mais deslumbrantes maravilhas naturais do planeta, enorme a ponto de ser visível do espaço, e bela a ponto de levar visitantes às lágrimas.

Mas a barreira e a profusão de criaturas marinhas que vivem em suas redondezas estão em sérias dificuldades.

Imensas seções da Grande Barreira de Coral, ao longo de centenas de quilômetros de sua porção norte, que ocupa águas mais cristalinas, foram recentemente classificadas como mortas, por conta de um superaquecimento da água do mar no ano passado. Seções mais meridionais, mais ou menos no meio da barreira, mal escaparam ao destino das poções setentrionais e agora estão passando por branqueamento, o que pode prenunciar novas mortes que privariam algumas das áreas mais visitadas da Grande Barreira de suas cores e formas de vida.

"Não esperávamos ver esse nível de destruição na Grande Barreira de Coral por pelo menos mais 30 anos", disse Terry Hughes, diretor de um centro financiado pelo governo australiano para o estudo de recifes de coral, na Universidade James Cook, e autor de um estudo sobre a Grande Barreira que saiu quinta-feira como matéria de capa da revista "Nature". "No norte, vi centenas de recifes - literalmente dois terços dos recifes estavam morrendo, e agora estão mortos".

Os danos à Grande Barreira de Coral, uma das maiores estruturas vivas do planeta, são parte de uma calamidade mundial que vem se desenrolando intermitentemente há quase duas décadas e parece estar se intensificando. No estudo, dezenas de cientistas descreveram o recente desastre como o terceiro episódio de branqueamento em massa de recifes de coral desde 1998, e de longe o mais extenso e mais destrutivo deles.

O estado dos recifes de coral é um indicador quanto à saúde dos mares. Seus problemas e morte são ainda mais um sinal dos estragos causados pela mudança do clima.

Se a maioria dos recifes de coral do planeta morrerem, algo que os cientistas temem ser cada vez mais provável, a vida mais rica e colorida do oceano pode ser perdida, em companhia das grandes somas que o turismo nas barreiras de coral gera. Em países mais pobres, há vidas em jogo. Centenas de milhões de pessoas obtêm suas proteínas principalmente de peixes que vivem nas barreiras, e a perda dessa fonte de alimento pode criar uma crise humanitária.

Com o mais recente episódio de branqueamento chegando ao seu terceiro ano, os cientistas dizem não ter dúvida sobre a causa.

Eles alertaram décadas atrás que os recifes de coral estariam em risco caso a sociedade humana continuasse a queimar combustíveis fósseis em ritmo descontrolado, liberando gases causadores do efeito-estufa que geram aquecimento do oceano. As emissões continuaram a crescer, e agora a temperatura básica do oceano é alta o bastante para que qualquer pico temporário represente risco crítico para os recifes.

"A mudança do clima não é uma ameaça futura", disse o professor Hughes. "Na Grande Barreira da Austrália, a ameaça se concretizou há 18 anos".

Os corais requerem água morna para prosperar, mas são extremamente sensíveis a calor acima do necessário. Um ou dois graus de calor excessivo podem matar as minúsculas criaturas.

Do final do século 19 para cá, a temperatura do oceano subiu em pouco menos de um grau, sob uma estimativa conservadora, e nos trópicos, que abrigam muitos dos recifes de corais, a elevação foi um pouco maior. O padrão climático El Niño, que atingiu um pico em 2016 e causou alta temporária na temperatura de superfície de boa parte do planeta, também contribuiu, causando o ano mais quente no registro histórico, iniciado em 1880.

Ficou evidente no ano passado que era provável que os corais de muitos recifes morressem, mas agora as avaliações científicas formais estão chegando. O estudo publicado pela "Nature" documenta vasto branqueamento de recifes em 2016, ao longo de uma seção de 800 quilômetros da barreira ao norte de Cairns, uma cidade na costa leste da Austrália.

O branqueamento indica que os corais estão sofrendo desgaste, mas eles nem sempre morrem e água mais fria pode ajudar em sua recuperação. Pesquisas subsequentes na Grande Barreira da Austrália, realizadas no final do ano passado depois do prazo para inclusão no estudo publicado pela "Nature", documentaram que extensas porções dos recifes haviam de fato morrido, e que não era provável que se recuperassem em curto prazo, se é que uma recuperação será possível.

O professor Hughes liderou essas pesquisas. Ele disse que seus estudantes e ele choraram quando lhes mostrou mapas sobre os danos, que ele calculou em parte sobrevoando a área a baixa altitude, em pequenos aviões e helicópteros.

Os levantamentos aéreos de Hughes, combinados a mensurações subaquáticas, constataram a morte de 67% dos corais em um longo trecho ao norte de Port Douglas; em algumas áreas, a proporção de corais mortos atingiu os 83%.

Por sorte, uma tempestade agitou as águas nas porções central e meridional da barreira em um momento crucial, e a mortalidade foi muito inferior nessas seções - cerca de 6% em uma área ao norte de Townsville e ainda mais baixa na porção mais meridional da barreira.

Mas um estudo do governo australiano divulgado na semana passada constatou que, em termos gerais, o ano passado trouxe "as maiores temperaturas já registradas na superfície do mar ao longo da Grande Barreira da Austrália".

De 1998 para cá, apenas 9% da barreira escaparam a branqueamento, disse o professor Hughes, e agora o trecho menos remoto e mais pesadamente visitado, que se estende de Cairns para o sul, está em perigo de novo. A temperatura da água lá continua tão alta que uma nova rodada de branqueamento está em curso, confirmou na semana passada a Great Barrier Reef Marine Park Authority, agência do governo australiano que administra a área.

O professor Hughes disse que espera que os danos sejam menos sérios este ano do que no ano passado, mas que "dois anos consecutivos de branqueamento são uma coisa inédita na Austrália". A porção centro-sul da barreira já foi seriamente prejudicada por atividades humanas como a dragagem, e pela poluição.

O governo australiano tenta combater essas ameaças locais por meio do plano Reef 2050, que restringe o desenvolvimento de portos, a dragagem e o despejo de resíduos agrícolas no mar, entre outros riscos. Mas a pesquisa do professor Hughes constatou que, dada a temperatura elevada, esses esforços nacionais de melhora da qualidade da água não são suficientes.

"Os recifes em águas lodosas foram queimados da mesma maneira que os de águas cristalinas", disse o professor Hughes. "Essa não é uma boa notícia, em termos dos esforços locais para prevenir branqueamento. A realidade é que não há muito que se possa fazer. É preciso enfrentar diretamente a mudança do clima".

Com a eleição de Donald Trump como presidente dos Estados Unidos, um recente acordo internacional para combater o problema, o chamado Acordo de Paris, parece estar em perigo. O governo conservador australiano também continua a apoiar o desenvolvimento do combustível fóssil, o que inclui projetos como aquele que muitos cientistas e conservacionistas encaram como mais imediata ameaça à barreira de coral - uma mina de carvão, que estaria entre as maiores do mundo e seria estabelecida pelo Adani Group, um conglomerado sediado na Índia, em uma área da costa australiana adjacente à barreira.

"O fato é que a Austrália já é o maior exportador mundial de carvão, e a última coisa que deveríamos fazer, com relação ao nosso maior patrimônio nacional, é agravar as coisas", disse Imogen Zethoven, diretora de campanhas do grupo conservacionista Australian Marine Conservation Society.

A Grande Barreira da Austrália cria cerca de 70 mil empregos no país e gera bilhões de dólares anuais em receitas turísticas, e ainda não está claro como a deterioração dos recifes afetará essa atividade econômica. Mesmo em áreas seriamente danificadas, porções extensas da barreira sobreviveram, e os guias provavelmente levarão os turistas a elas, evitando as áreas mortas.

A crise mundial dos recifes de coral não significa necessariamente a extinção de espécies de coral. Os corais podem se salvar, como muitas outras criaturas estão tentando fazer, se deslocando em direção aos polos à medida que a Terra esquenta, e estabelecendo novos recifes em águas mais frias.

Mas as mudanças que os seres humanos causam são tão rápidas, em termos geológicos, que não fica totalmente claro se as espécies de coral serão capazes de acompanhá-las. E mesmo que os corais sobrevivam, isso não significa que recifes individuais continuarão a prosperar em sua localização atual.

Os recifes de coral são sistemas sensíveis, construídos por animais incomuns. Os corais mesmos são minúsculos pólipos que agem como agricultores, capturando coloridas plantas unicelulares conhecidas como algas, que convertem luz do sol em alimento. Os pólipos de coral formam colônias e constroem um andaime de pedra calcária onde passam a viver - um recife.

Mas quando a água próxima de um recife esquenta demais, as algas começam a produzir toxinas e os corais as expelem, em autodefesa, e se tornam fantasmagoricamente brancos. Se a temperatura da água cair com rapidez suficiente, os corais serão capazes de cultivar novas algas e sobreviver, mas se isso não acontecer podem sucumbir a doenças ou desnutrição.

Mesmo quando os corais morrem, alguns recifes terminam por se recuperar. Se a temperatura da água se mantiver moderada, as seções danificadas da Grande Barreira da Austrália podem se ver novamente recobertas de corais dentro de 10 ou 15 anos.

Mas a temperatura do oceano agora é alta a ponto de tornar mais frequentes os eventos de branqueamento em massa. Se isso se tornar rotina, muitos dos recifes de coral mais prejudicados talvez se vejam incapazes de restabelecimento.

Dentro de uma década, certas formas de coral, como o coral ramificado e o coral plate, podem estar extintas, dizem os cientistas que pesquisam sobre os recifes de coral. O mesmo se aplica a uma ampla variedade de pequenos peixes que dependem dos recifes para proteção contra predadores.

"Não creio que a Grande Barreira da Austrália um dia volte a ser tão grande quanto foi no passado - pelo menos não nas próximas décadas", disse C. Mark Eakin, especialista em recifes de coral da Administração Nacional do Oceano e Atmosfera (NOAA) norte-americana, em Silver Spring, Maryland.

O Dr. Eakin é um dos autores do novo estudo e comanda um programa chamado Coral Reef Watch, que produz mapas preditivos para alertar sobre a iminência de episódios de branqueamento. Ainda que o El Niño do ano passado tenha terminado, as temperaturas da água são altas o bastante para que seus mapas mostrem água quente demais em milhões de quilômetros quadrados de oceano.

Kim Cobb, cientista do clima no Instituto da Tecnologia da Geórgia, não participou do novo estudo, mas descreveu a pesquisa e suas conclusões como acuradas - e desanimadoras. Ela disse ter visto forte devastação dos corais no ano passado perto da ilha Kirimati, parte da República de Kiribati, que fica a milhares de quilômetros da Austrália. Cobb visita a ilha regularmente para suas pesquisas.

Dado o risco de que o esforço internacional de combate à mudança do clima perca o ímpeto, "as temperaturas do oceano vão continuara subir", disse a Dra. Cobb. "A ideia de que temos prazo de 20 ou 30 anos antes que a próxima onda de branqueamento e destruição de corais aconteça é basicamente uma fantasia".

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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