Folha de S. Paulo


Civilizações pré-colombianas moldaram vegetação da Amazônia

As florestas da Amazônia foram moldadas pela ação humana ao longo de milhares de anos, num processo que transformou boa parte da mata em gigantescos "pomares", repletos de espécies domesticadas de árvores. O manejo habilidoso dessas plantas pelos antigos habitantes da região acabaria criando deleites gastronômicos que hoje chegam ao mundo todo, como o cacau e a castanha-do-pará.

Esses são os exemplos mais famosos, mas a lista completa é bem mais extensa: 85 espécies de árvores foram domesticadas em algum grau na floresta, calculam os autores de um estudo internacional que acaba de ser publicado na revista especializada "Science".

Em alguns lugares da bacia do Amazonas, as espécies selecionadas e alteradas pela atividade humana chegam a ser as mais comuns da mata, apesar da gigantesca diversidade natural de vegetais da região.

"A gente está falando de sistemas sofisticados de produção de alimentos, mas que são muito diferentes dos de hoje porque a diversidade em si era algo importante. Você não tem o manejo de uma única espécie agrícola, mas de várias, mantendo a floresta em pé", explica a bióloga Carolina Levis, uma das autoras da pesquisa, que está concluindo seu doutorado no Inpa (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia) e na Universidade de Wageningen (Holanda).

No estudo, Levis e dezenas de outros colegas do Brasil e do exterior conseguiram traçar o mais completo mapa da presença dessas plantas na região. O ponto de partida para essa tarefa foram os dados da chamada ATDN (sigla inglesa de Rede de Diversidade de Árvores da Amazônia), que reúne informações sobre a distribuição de quase 5.000 espécies arbóreas amazônicas.

HIPERDOMINANTES

Usando esses dados, um dos colaboradores da nova pesquisa, o holandês Hans Ter Steege, já tinha mostrado que, apesar dessa imensa variedade de espécies, a Amazônia abriga algumas árvores "campeãs", conhecidas como hiperdominantes. São 227 espécies que, somadas, são muito mais comuns que a média das demais plantas, correspondendo a uns 50% de todas as árvores amazônicas.

Ocorre que, das 85 árvores domesticadas, 20 espécies fazem parte dessa lista das hiperdominantes –cinco vezes mais do que o esperado, quando se considera o número total de espécies arbóreas da região. Outro detalhe importante é que essas plantas domesticadas hiperdominantes são muito comuns na Amazônia: ao menos algumas delas estão presentes em 70% da região, enquanto as outras espécies hiperdominantes (as não domesticadas) só ocorrem em 47% da bacia.

Isso sugere que a ação humana é que as espalhou Amazônia afora, uma vez que estudos genéticos mostram que muitas dessas plantas domesticadas hoje florescem em lugares muito distantes de seu ambiente original –é o caso do próprio cacaueiro, nativo do noroeste amazônico, mas hoje mais comum no sul da região.

E, de fato, na maioria das áreas, a concentração de espécies moldadas pelo uso humano aumenta nas proximidades de sítios arqueológicos e dos rios –ou seja, áreas que comprovadamente foram ocupadas por pessoas no passado ou que serviam (e ainda servem) como as principais estradas para quem circulava pela mata. Para onde os antigos indígenas iam, as plantas iam junto– e esse processo foi fazendo com que elas se tornassem cada vez mais comuns, alterando a composição natural de espécies da floresta para que ela se tornasse cada vez mais útil para membros da nossa espécie.

CERVEJINHA

Isso significa, é claro, árvores que produziam frutos mais saborosos ou folhas e troncos mais adequados para a construção de cabanas –e mesmo as mais úteis para o preparo de bebidas fermentadas, explica Charles Clement, biólogo do Inpa e coautor do novo estudo.

"Você certamente vai tomar uma cervejinha depois de sair do trabalho hoje. Os índios também consumiam uma grande variedade de cervejas, incluindo as feitas com o fruto da pupunha, que pode ser selecionado para ser muito rico em amido, o que favorece a fermentação", compara ele.

A pupunha é um dos casos de árvores amazônicas totalmente domesticadas, ou seja, que sofreram grandes modificações graças à seleção promovida pelo homem e que hoje dependem da nossa espécie para se propagar. Enquanto os frutos "selvagens" da planta pesavam só 1 grama, diz Clement, hoje é possível encontrar os que alcançam 150 gramas na tríplice fronteira entre Brasil, Colômbia e Peru.

A lista de espécies inclui ainda as classificadas como parcialmente domesticadas (é o caso do cacaueiro) e incipientemente domesticadas (a castanheira). A diferença é, em grande parte, questão de grau. O primeiro tipo já tem consideráveis diferenças de aparência e genética em relação aos seus parentes selvagens, embora ainda consiga se virar sozinho sem a ajuda humana, enquanto no segundo tipo essas mudanças são bem mais sutis, explica Carolina.

O arqueólogo Eduardo Góes Neves, da USP, que também assina a pesquisa, calcula que essa grande processo de "engenharia florestal" amazônica começou há pelo menos 6.000 anos, mas pode ter se intensificado de uns 2.500 anos para cá. É quando a região fica repleta de sítios com a chamada terra preta –um solo muito fértil produzido pela ação humana, em parte graças à queima controlada de restos de vegetais.

"Nossos dados mostram que a linha separando caçadores-coletores de agricultores na Amazônia foi muito tênue", afirma Neves. "Existe uma 'zona cinzenta' na história de manejo dessas plantas, algumas das quais foram intensamente manejadas, mas nunca modificadas geneticamente a ponto de viraram novas espécies." Para o arqueólogo, o estudo mostra que, além de serem um patrimônio natural, as florestas da região também são um patrimônio cultural, por sua ligação estreita com a intervenção humana.


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