Folha de S. Paulo


análise

Medições incineram dúvidas semeadas pelos negacionistas

O negócio dos céticos do aquecimento global é plantar dúvidas para colher desconfiança nos resultados dos pesquisadores que trabalham na área. O calor recordista registrado por três anos sucessivos, contudo, ajudará a calcinar as ervas daninhas que eles vinham semeando.

Entrou em combustão espontânea a ideia de que o aquecimento global sofrera um "hiato" entre 1998 e 2013. O primeiro ano da série escolhida a dedo havia sido excepcionalmente quente, e a ausência de recordes nos anos subsequentes permitiu forjar a tese do resfriamento.

Aí vieram 2014, 2015 e 2016. Todos, em sequência, os anos mais quentes já registrados desde 1880. O hiato virou pó.

Agora alguns poderão tentar argumentar que a tríade de rachar mamona não vale, porque recebeu a ajuda de um El Niño intenso em 2015.

Essa anomalia intermitente nas águas do oceano Pacífico, afinal, está associada com anos escaldantes, como foi 1998. Tudo ainda se encaixaria na moldura da variabilidade natural do clima.

ANOS MAIS QUENTES - Diferença de temperatura anual em relação à média do século 20, em ÚC

Haveria alguma verdade na primeira parte do argumento. Mesmo em 2016, quando o El Niño já arrefecia, a atmosfera ainda reverberava seus efeitos.
Contra essa explicação, no entanto, pesa o fato de que 2014 não foi um ano de El Niño. Ele bateu o recorde, assim, sem ajuda externa.

Além disso há uma questão quantitativa. O ano passado ficou 0,83°C acima da média do período de referência (1961-1990) empregado pela Organização Meteorológica Mundial.

Já em comparação com a era pré-industrial, a atmosfera na superfície do planeta esteve 1,1°C mais quente, na média, em 2016. É um valor muito próximo do estipulado como variação máxima pelo Acordo de Paris (2015), 1,5°C.

Um aquecimento dessa ordem, indicam análises estatísticas, seria de ocorrência muito improvável apenas sob a ação de fatores naturais, sem a contribuição dos gases do efeito estufa emitidos por atividades humanas como produção de energia, transportes e desmatamento.

Estudo em janeiro de 2016 na revista "Scientific Reports" estimou que uma anomalia na temperatura da magnitude observada em 2014, por exemplo, tinha 600 a 130 mil vezes mais probabilidade de ocorrer na presença de atividades humanas do que sem elas.

Ainda falta alguém calcular quais seriam as chances, sem o fator antropogênico, de uma série inaudita como 2014/2015/2016 acontecer.

O ano de 2016 será inesquecível, e não só porque um cético do aquecimento global topetudo como Donald Trump se tornou o homem mais poderoso do mundo.
Por volta do Natal, algumas áreas do Ártico enfrentavam temperaturas até 20°C acima do usual para a época do ano. Não por acaso, os modelos de computador que simulam o futuro do clima predizem que essa região do globo sofrerá o aquecimento mais intenso e rápido.

Não há de ser coincidência, tampouco, que a camada de gelo marinho nos oceanos polares, tanto no Ártico quanto em torno da Antártida, tenha encolhido muito mais que a média em 2016.

Não se trata de um recorde, ainda. Mas quem não desconfia da ciência tem boas razões para temer o pior.


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